2007-09-06

O Automóvel III

Sábado, Verão, uma linda manhã de sol. O “lindo” para as cores claras, brilhantes, o branquear dos tons, a sensação extrema de luz, quase o desconforto, bem ditos óculos escuros.
A Toyota encontra-se imóvel, meio asfalto, meio terra, areia. O ar está salgado, sabe a mar. Estranha névoa que percorre a linha da praia sem nunca passar as dunas, sem nunca ofuscar o sol, traço de vertigem na paisagem costeira. O Zé está de olhos fechados no lugar do condutor. Tem no seu colo um livro aberto. As mãos sobre o livro tremem ligeiramente. A respiração é pausada, por enquanto.
Agora que já é mais tarde, pela cara do Zé escorrem gotas de suor, acelera o ritmo cardíaco, o ar entra e sai mais rápido, mexe as pernas, cai o livro. Acorda assustado, incomodado com a falta de espaço, com o calor, Que brasa!
Ao sair da carrinha reparou no livro aberto, Herberto Hélder, do mundo, “Esta coluna de água, bastam-lhe o peso próprio, o ar à roda,”, a garrafa, com esse precioso líquido, em cima da mesa do restaurante no dia anterior. A decisão de abalar para sul, por dois dias, para ler sob um céu aberto, horizonte sem arestas. Hoje fecha com cuidado o livro de poemas e arruma-o, guarda-o na mochila, esconde-o, hoje é ele o poeta. Antes fosse. As palavras nunca lhe fluíram. Oralmente desaparecem por entre grunhidos e trejeitos faciais. Na escrita emperram no branco da folha. Tantas as vezes que ideias brilhantes se dissiparam na aridez da caneta e do papel. Desistiu de o fazer. Deixou que o olhar fosse a sua poesia.
Percorre a passadeira de madeira que o leva para o primeiro desnível, onde a vegetação é verde seco e as flores arranham. A areia é grossa, talvez nova, ainda pouco rolada nos ciclos marítimos. Sente-a nos pés à mistura com conchas, umas inteiras, outras partidas, todas juntas no limite da maré anterior, perto está a rebentação, escondida no segundo desnível. As ondas desfazem-se na areia numa raiva trepadora que morre na forte inclinação da praia. Difícil entrar e sair, lá dentro tudo é mais calmo, mais amplo, mais bruto, dois metros e deixa-se de ter pé, que magnifico lugar para relaxar, deixar os olhos fazerem magia, soltar a poesia dos azuis do mar, dos azuis do céu. Olhá-los demoradamente, as palavras que não ditas, não escritas, as palavras olhadas, os azuis que o fazem sentir bem, que não é um estranho no mundo, que é normal querer isolar-se, não querer companhia, que transformam tudo isso num belo e efémero poema, como se a palavra efémero lhe pudesse aumentar a beleza. Não fosse o estômago e o Zé teria torrado ao sol. Quase nunca a fome o convence, não é escravo da comida nem das horas para comer, para se sentar à mesa, quase sempre sozinho. Dias não são dias, está com fome, porque não aproveitar? Sentiu-se satisfeito com a sua decisão. Enquanto palmilha o caminho em sentido contrário vai inventando menus, cardápios com nomes a cheirar a Verão, nomes de peixes, peixes abertos no prato, o azeite, o vinagre, só uma gota, para tirar o doce. Apetece-lhe vinho, vinho branco muito fresco, está de apetites, ele que raramente bebe bebidas alcoólicas, muito menos quando conduz. Se vai aproveitar a fome, também vai aproveitar a sede. A carrinha está perto, apercebeu-se que acelerou o passo e sorriu, Que gesto mais impróprio, nem pareço eu! Lançou um último olhar às dunas antes de engrenar a primeira. Fez a inversão de marcha com cuidado e iniciou a subida em segunda. Já no alto, e quando a estrada inicia um serpentear pelo pinhal, o motor falhou. Aproveitando a descida procurou uma sombra, uma daquelas enormes árvores seria sua amiga. De falha passou a silêncio. O arranque eléctrico não fazia mover a mecânica. Merda!


(cont.)

4 comentários:

pb disse...

passei para te ler, neste fds que vim a casa. correu tudo bem agora, falta a parte mais xata e ainda só passou uma semana....um abraço

Titá disse...

Humm...como é bom ficar aqui a ler-te...

Obrigada
Um beijo

e o resto? Fiquei ansiosa

Isabel disse...

Olá Paulo, meu amigo.
Cá estou regressada novamente de Arraial d'Ajuda e cheia de novos sentires.
Quando menos esperamos algo de novo e bom acontece.
Chegada pois estava na hora de vir ler-te.
É um must (e eu que não gosto de Inglesismos) este pedaço de tempo passado a ler-te.
Eu sabia quando li o primeiro capítulo desta história que ela ia ser uma história cheia de encanto e não me enganei. Acabei de o confirmar agora que li mais dois capítulos.
Escreves realmente muitíssimo bem e consegues ter o mérito de nos encher o peito com as pequenas coisas da vida, as mais simples, mas que de facto são as mais importantes.
Acreditas que agora no fim ao ler-te também a mim me apeteceu comer um bom peixe, uma boa salada, com pimentos de preferência, e claro acompanhado de um bom vinho branco bem fresquinho. Eu sou mais de tintos mas com peixe fresco sabe bem um vinho branco, e o mérito de me dar vontade de comer peixe à hora do lanche é apenas tua e da tua capacidade de nos levares para dentro do que escreves, contrariamente ao Zé a ti flúem-te as palavras para alegria minha e de quem te lê.
Olha Paulo adorei e aqui fico esperando a continuação.

Abraços

Isabel

Suga_Mentes disse...

Olá mano , um abraço , gostei imenso , como sempre , parabens