“Do adeus e o adeus, não a ele, que sendo deus tudo percebe,
criador primário e inato e cuja existência omnipresente não permite tais
estados de alma, falo do adeus humano, defeituoso, repleto de cambiantes cromáticas,
texturais, sabores distintos entre o abandono e a aventura. Eu que já exerci o
acto, o gesto mudo, porque no meu caso foi mudo, percebi a separação, o
afastamento físico que não permite abraços dependentes, inconscientes da sua
dependência, tão certos de estarem sempre lá, até um dia, eu disse-o sem o
dizer. Não precisei de moradas nem de códigos postais, números que permitissem
contactos, contactos que permitissem uma presença que na realidade não existia.
O adeus foi silencioso, assim como foi silenciosa a decisão. Se foi pensada, foi,
foi pensada, maturada em noites cinzentas de invernosa insatisfação
intelectual, não a erudita, simplesmente aquela que nos faz pensar em caminhos
tortuosos, que coloca em funcionamento o intelecto ao serviço da sobrevivência,
que não sendo independente do saber não depende da sua quantidade para existir,
apenas porque tudo o resto é mais importante, e o resto não é o que resta mas
muitas vezes o que basta.
Do adeus e o adeus, a decisão que depois de o ser, de se
concretizar intelectualmente, necessitou da aplicação prática, obviamente o objetivo
final. Os dias aparentemente normais, porque normais de rotinas, indícios
externos que levantassem suspeitas, apresentaram-se como testes às certezas
teorizadas. O levantar cedo, porque o corpo se encontrava deitado, o levantar
de um corpo que tinha deixado de dormir, ou dormia porque isso o descansava, o
corpo que julgando dormir nunca o fazia, era um acto de constrição, apenas
tolerado porque havia a convicção de nele existir alguma utilidade. Falava eu
do levantar cedo, do corpo que se levantava sem se lembrar da alma que
transportava, uma espécie de doença degenerativa, sectarista o suficiente para permitir
apenas uma existência, uma realidade aparente, uma imagem que se mostra.
Do adeus e o adeus, o preparo sem restrições, mala feita sem
ser mala porque não havia mala, apenas o dia, a hora em que se parte e o adeus
se concretiza em acção física, que o verbo o seja depois é problema de somenos
importância, irrelevante perante a força do que acontece, o dia que se faz dia
porque a luz assim o permitiu, na sua incidência cíclica de outras dependências
físicas entre astros. O carro arranca, mas podia não ser um carro, mas foi um
carro, um carro experiente muito embora inexperiente neste tipo de viagens em
que se vai e não se volta. O adeus não foi dito, nem tão pouco gritado, não
houve abraços nem lágrimas nem jantares de despedida nem uma palavra que
prometesse porto seguro se algo corresse mal. Foi simplesmente um adeus.
Do adeus e o adeus fiquei com a convicção da sua
fragilidade, demasiado perto para ser uma separação, demorou a sê-lo
efectivamente, um ano mais precisamente, um ano de retrocessos semanais, de
dúvidas sobre a sua verdadeira finalidade, de laços que julgava frágeis mas que
eram a minha vida. Percebi então, numa noite alcoólica mas de uma lucidez
extraordinária, o que precisava fazer. A conversa saturava o ar de vapores
etílicos e a confissão saiu mórbida, quase chorosa. A resposta foi seca, se
tomaste a decisão vai! Olhei-o e percebi enfim o que tinha de fazer. Nunca lho
disse, a noite foi longa, muito longa, talvez até o sol quase nascer, não me
lembro do resto, lembro-me de pensar que o adeus não tem número, nem morada
para onde escrever.
Do adeus e o adeus percebi que pode não ser para sempre, que
pode haver reencontros porque a nossa vida são vidas, são todas aquelas que nós
permitirmos que sejam. Não existem obrigações contractuais, mas apenas
decisões, compromissos pessoais e que por isso mesmo não devem ser quebrados
até que se concretizem.
Do adeus e o adeus personifiquei-os e dei-lhes o meu
significado. Dessa experiência apenas posso teorizar o que dela retirei. Cada
adeus é um adeus, cada experiência é uma experiência…
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