2013-01-09

No Hospital

Dirijo-me para o hospital, sozinho como sempre estive. Conduzo o carro pela estrada escura. Sinto que as árvores ladeiam o asfalto avisando-me das bermas. O velocímetro, também ele aviso, informa-me da velocidade. Tenho o coração apressado e falta-me o ar. Está frio, falta pouco para a meia-noite, falta pouco para o dia vinte cinco, vinte cinco de Dezembro. A rapariga da secretaria pede-me o cartão, fala comigo e apercebe-se que eu não tenho voz, apercebe-se do sussurro que é o meu respirar. A sala está vazia enquanto eu aguardo uma entrada na sala de triagem. Num ecrã de canto as árvores são de Natal, a história também. Tenho o olhar fixo na porta da triagem, ouvidos postos no vazio da sala esperando pelo meu nome balbuciado numa qualquer pronuncia que me queira atender. Imagino a enfermeira, desenho-a com formas curvilíneas por debaixo de uma bata imaculadamente branca. Imagino-a nova, ou nem tanto, apenas o suficiente para lhe entregar a alma, dizer-lhe do que sofro e amá-la, amá-la naquele segundo em que me revelo frágil. A voz que me questiona é insipida, espera respostas e angustias. Respondo-lhe conversas banais, estou aqui sem querer, eu até nem queria vir sabe, o problema é que não consigo respirar. Sinto-me ofegante mas sorrio, tento ser simpático, eu não quero incomodar. Colocam-me uma pulseira amarela. Pouco importa a cor, desde que eu não incomode. Volto à sala de espera. Já não está vazia. Acabaram de entrar duas macas. Um acidente grave. Só isso justifica a inquietação dos presentes. Alguns deles pressionam o segurança. Embora habituado a pressões não é indiferente, os seus olhos tiveram a visão da morte quando olharam para as macas que os bombeiros transportavam. Perdi-me no desespero estranho daqueles estranhos, perdi-me a pontos de não ouvir o meu nome. O meu nome foi repetido, talvez três vezes, as vezes necessárias para que fosse preciso o segurança questionar-me. Sim sou eu, sempre fui, mas isso agora não vem para o caso. Obrigado, desculpe, ou desculpe e obrigado, ou apenas desculpe, estava distraído, ou simplesmente o levantar-me da cadeira e dirigir-me apressado para a porta da sala quatro. Já lá dentro e aquela mulher que é médica e tão minha mãe, fosse ela mais velha, menos loira, menos olhos azuis, menos estrangeira e talvez fosse minha mãe. Entrego-me como me entrego às mulheres que amo, braços estendidos, nus, expectante, ofegante, e agora…vou-lhe medir a tensão, a entesadura, o nervosismo, não! Apenas o que o coração aguenta. Falta-me oxigénio e já não consigo ouvir como deve ser. A entesadura está alta, não! A tensão está alta, o nervosismo…também. Será preciso um comprimido debaixo da língua, cortisona na veia, oxigénio enriquecido, um pouco forçado, análises ao sangue e um raio que pode ser X, depois, depois logo se vê. O tempo passa, diz-se que voa, mas não. O tempo esvoaça em torno da nossa paciência, testa o folego, a vida, o que queremos dela. O tempo só existe para nos conhecermos, se quisermos. A cadeira é dura, o ambiente sereno. Ouvem-se gemidos mas eu não os ouço, vejo-os nas expressões doridas de quem sente dores. Não lhe conheço as dores mas sou solidário com o seu sofrimento. O seu sofrimento faz bem ao meu, atenua o meu egoísmo e faz-me sentir mais humano, faz-me sentir pertence de um sofrimento maior, que não é só meu. Passam as horas agora que o tempo passou. O tempo deixou de ser tempo, agora já pode ser controlado por um relógio. Sim, é agora que ele me incomoda, o pulso revira-se convulsivamente a pasmos regulares mostrando os ponteiros, mostrando-me que estou melhor. Quando se está melhor quer-se sair e eu quero sair. A tensão continua alta mas eu já não a sinto. A falta de ar já só é uma fartação ao ar do hospital. O médico que acabou de entrar ao serviço explica-me num português diferente a necessidade de continuar sentado, de tomar mais dois ou três comprimidos. É noite e o natal já se foi. O Natal é apenas um lapso, uma memória que perdura para se esquecer até ao próximo…Natal. Eu continuo a gostar do Natal. Gosto dele porque gosto da minha filha, porque gosto do meu pai, porque gosto dos amigos com quem almoço nesse dia. Gosto do Natal porque gosto de companhia. Nunca me preocupou o menino, nem as dores de parto da Maria, nem as ansias de José, nem a pensão ranhosa onde passaram a noite do nascimento fugindo ao infanticídio de Herodes. Estou cá fora. Convenci o médico que fala um português diferente. Sim estou melhor e a tensão já não baixa mais, pelo menos enquanto me mantiverem aqui. Você tem de ter cuidado, controlar a máquina. Claro doutor, faço-o todos os dias. Vá a um especialista, a um cardiologista, tome medicação. Sim doutor, vou fazê-lo já amanhã, uma marcação que não tenho coragem de fazer com medo de mais restrições. Hoje não é dia vinte seis e menti quando disse que fui sozinho para o hospital. Fui sozinho porque foram essas as recordações, porque não queria ir e fui obrigado, porque descompus a farmacêutica que mo aconselhou quando tentei comprar antibióticos sem receita. Você não está nada bom, vá ao hospital. Fui sozinho mas apenas na minha cabeça. Estás melhor? Sim estou…Vamos para casa? Sim mas primeiro vamos passar na farmácia. A miúda onde está? Eu vou busca-la depois. Não vou esquecer tão cedo este natal. Eu também não.

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