2013-01-29

Decisão (II)

Estranhas o quarto? Parece-te maior? Lembras-te dele quando ficou vazio, quando te mudaram a mobília, entraste lá dentro e disseste para ti, encham isto depressa. Tinhas treze, onze? Na minha memória ficcionada tens doze anos. Será portanto com essa idade que vais sentir o quarto grande…


Acordou devagar, seco, enferrujado do pescoço para cima, peças soltas faziam barulhos, ecos, reverberações no interior do seu cérbero martirizado. O quarto parece-me maior, pensou. Veio-lhe à ideia o cheiro de madeira nova, tinha doze anos quando lhe mudaram o quarto. O quarto ficou tão vazio e no entanto tão cheio, de ar, aquela mistura gasosa, aquele pormenor irrelevante que nos permite sobreviver. Mas não era só o ar, era… aquele ar, também ele mistura de pó, cheiro de limpeza rápida, também uma humidade. À noite estranhou tudo, a cama grande, o esqueleto da estante, vazio de órgãos e músculos, livros e bonecos que virão mais tarde, o roupeiro insinuando a prisão, pobres roupas jogadas ordeiramente para o seu interior, também elas assustadas com a novidade, intimidadas com aquele à vontade frio do mobiliário. Quando fez dezoito anos já o quarto parecia pequeno, tudo era pequeno, até o bom senso. A partir desse momento o quarto foi sempre encolhendo. Lembra-se de um dia, já ele tinha saído de casa, já ele estava casado, de ir visitar os pais, o almoço e a tradicional passagem pelo “seu” quarto, a mãe garantindo-lhe que está tudo no mesmo sítio e ele não se imaginando num lugar tão pequeno, liliputiano, e ele na foto, muito novo, boneco de um cenário de criança. Vai para seis meses que voltou para a casa dos pais. Como que por milagre o quarto cresceu. Dormiu enrolado como tinha dormido nas últimas duas semanas, dentro do automóvel. Nesse primeiro dia, nesse primeiro resto de jornada, acordou e deixou-se estar na cama sem se mexer, deixou que os olhos passeassem em voltas de reconhecimento, procurando detalhes, limpando o pó à memória. Há muito que o dinheiro do subsídio acabou, a falta de dinheiro reduziu-lhe o mundo, tudo ficou mais longe. O carro é racionado e está velho, o dele foi entregue ao banco, assim como a casa, a mulher, os filhos, a vida, nem toda…a que sobra precisa de tomar uma decisão. Também houve uma altura em que ele sentiu que o país era pequeno. Hoje o país parece-lhe enorme, tudo afastado, tudo tão opressor, uma opressão consentida como inevitável, produzida de consensos, inversa à desgraça ou ao cúmulo da mesma. Vou tentar encontrar o amigo do Miguel. Tentativa fácil, o cartão com o contacto ainda está fresco no bolso do casaco, consequência de um encontro furtuito, aquelas coisas que acontecem quando se anda muito a pé. Aqui não se arranja nada, a frase é repetida como uma senha, a conversa começa a partir daqui, e lá fora, depende, se tiveres engenharia e te safares em línguas, pelo menos o inglês, eu era vendedor, trabalhava numa imobiliária, estou desempregado, faço qualquer coisa, isso não é assim tão fácil, construção, com o teu corpo, morrias em dois dias, e assim morro na mesma, olha dou-te este contacto, obrigado, gostei de te ver, eu também…eu também…

Já percebi. Tomaste uma decisão. Vais gastar os últimos cobres numa operadora de telemóveis, nem me interessa qual, se calhar até dás de comer a duas, mas não tenho nada a ver com isso. Talvez telefones apenas para te justificar, alguma coisa eu fiz, não podes passar o dia em pijama, hoje nem saíste de casa, talvez telefones porque estás mesmo decidido, não sei o que te faça. Gostava de te fazer forte, a ver vamos…

O telefonema foi feito. Talvez por estar adormecido anuiu tão rapidamente à marcação de um encontro, não um encontro particular, com todas as excelências de algo singular, um encontro de vários encontros, apareça lá por volta das duas, duas…duas da tarde, na próxima terça-feira, aquilo é junto ao mercado, se você se vir á rasca dê-me uma apitadela, fica combinado, na próxima terça-feira, sim, às duas. Falta uma semana. A inatividade é inimiga das decisões, sete longos dias para poder pensar em tudo o que poderá correr mal, e se eu não aguento, e se o Miguel tem razão…e se eu não pensar mais nisto, por agora…e se eu procurar outras alternativas…duas decisões no mesmo dia e quase à mesma hora, há que aproveitar o filão, de qualquer maneira a quantidade não significa perfeição, embora o conceito seja difícil de engolir nos dias que correm.

Vou ter de te obrigar a levantar. Basta distrair-me um pouco e começas logo a filosofar, perdão, a pensar na vida, só me faltavas cá tu, desculpa, olha vou-me embora que tenho de ir almoçar, até logo, até…amanhã…se deus quiser…nem parece teu, ficou-me a expressão, de facto alguém tem de querer para que as coisas aconteçam…Adeus! Está bem, já percebi…

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