2014-03-09

XI (De o livro dos medos por Paulo Guerreiro)

XI
Cinza.
Ao longo da linha,
Cinza.
O trajecto cinzento,
O corpo pequeno
E a alma um pouco mais escura.
As ruas que deixam de ser,
Ruas,
E o passeio que nos abriga,
Cada pedra um amigo,
Cada amigo um desejo.
A idade da loucura foi-se,
Foi-se.
Eu fiquei mais velho,
Mais velho em tudo o que toco,
Mais velho tudo o que me toca.
Procuro o isqueiro e acendo,
A vela,
A luz que não é um interruptor,
Uma luz sem dor,
Sem electricidade.
A música também pode ser,
Isso,
Algo sem dor,
Não postiço.
Despi-me, da roupa,
De tudo.
Mesmo assim não estou nu,
Apenas cru,
Carne viva, ainda em sangue,
O resto que sobra,
Quando a vela se apaga.
Cinzentas as imagens,
Como se a cor só fosse isso,
Uma linha entre o preto e o,
Branco,
Como que o branco só,
Fosse cor,
E tudo o resto,
Amor!
Já não me deslumbro.
Tenho medo.
Tanto que eu queria,
Que tudo fosse mais cedo,
E amanhã outro,
Dia.
Cinza
Caiem-me nas mãos,
Os restos,
Da fogueira,
Do fogo quando nasci.
Alguém que me agarra,
Enfermeira,
Outras mãos de onde bebi.
Meu Deus!
Tudo tão cinza,
O rectângulo que também,
É
Prisão,
Portugal,
Nação.
Valha-me Deus!
O sonho cinza da cruz,
E Jesus,
E Eu.
E o Cristão,
E o Judeu,
E o Muçulmano,
Que Deus me deu,
Ou vendeu.
A Ásia de Budas distantes,
Confúcios vermelhos,
Bordados,
Toda uma seita que me justifica.
O mar ali tão perto,
E eu longe a afogar-me,
Numa terra escura e espessa,
Lama de lama,
Terna,
Mistura,
E eu à procura.
Cinza,
As minhas mãos estão cheias,
De cinza,
E eu cheio das minhas mãos,
Uma de cada lado,
Numa cadeira e eu sentado.
Sobre mim tudo cai,
O pano que não tem cor,
O céu despido,
O corpo velho com dor.
Cinza,
Porque tudo o resto é

Cinza.

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