2006-12-03

Um cão, uma rua e mais qualquer coisa…

Sou um cão, chamam-me “Benfica” e dou-me pelo nome. Nas ruas onde nasci, vi crescer crias humanas, pequenos rebentos que dos braços das mães passaram para carrinhos de bebé e dai para o chão. São eles que eu sigo para todo o lado, conheço-lhes as portas, as portas para onde os sigo no fim do dia, as portas onde espero por eles nas manhãs. O Paulo Jorge, o Dado, o João, o Carlos do “lugar”, o Zé Alberto, o Mário Rui, o Rui “Gordo”, duma ponta à outra da Alexandre Salles. Houve uma altura em que andavam sempre na rua, agora só quando o sol começa a descer. Falam da escola, falam de clubes e grupos e eu sento-me e ouço, gosto de os ter por perto, gosto deles, dos seus risos, das suas festas, das suas brincadeiras. Sei que estou ficando velho, por algum motivo que desconheço eu vou perdendo as forças e eles vão ficando cada vez maiores. Gosto de duas cadelas, não preciso ir muito longe quando me sinto inquieto, a “Flecha” e a “Vaidosa”. Disputo-as com outros cães que vêm de longe, alguns de muito longe. Sempre lutei pelo que precisava, sou orgulhoso e defendo o meu território. Sei que muito do meu esforço foi morto ou perdeu-se nas ruas sem eu saber porquê, no entanto um dos últimos esforços foi premiado. Soube pelo Paulo Jorge que o grupo queria fazer um clube, fui atrás deles quando escolheram o sítio, as traseiras dos prédios, via-se o comboio passar a ponte e ouvia-se melhor a sirene que todos os dias tocava quando o sol estava a pino. Desprezaram uma árvore e dois outros lugares que alagavam durante o Inverno. Meteram mãos à obra roubando materiais das obras que iam sendo feitas no imenso descampado que separava a rua do caminho de ferro. Mais tarde soube que pertenciam à futura escola preparatória. Vi o Paulo furar o pé num prego e trazerem as tábuas de arrasto com ele, passei tardes a ouvir cavar e martelar, vi a casa…”O Clube” tornar-se abrigo, com telhado, com janela e com porta de senha para entrar. Nasceram por essa altura quatro filhos meus do ventre da “vaidosa”. O “Nero”, parecido com a mãe era gordo e com pelo louro que se adivinhava longo, o “Lorde”, magro e de pelo curto de um castanho indeciso, destinado a substituir-me e mais dois que nunca vi. A “Vaidosa” tinha dono, tinha donos, moravam numas barracas junto aos prédios novos onde os meus amigos costumavam ir para comer pevides, amendoins e tremoços em troca de algum trabalho, trabalho ligeiro a ensacar essas coisas que me ofereciam e de das quais eu nunca gostei. Também eles não gostaram desses quatro cachorros, os primeiros duma cadela que sempre protegeram. Ao “Nero” arranjaram logo dono, era bonito e prometia ser um belo animal. Ao “Lorde” foram os meus amigos que o salvaram, comprando-o por doze e quinhentos, dinheiro tirado às suas economias a bem do clube que haviam formado, ouvi falar do clube dos sete mas nunca percebi bem porquê…Dos outros dois adivinhei-lhes a morte…Não havia lugar para bocas a mais.
Um dia fiquei doente, talvez velhice, ou coisa que comi, os olhos envidraçaram-se e as moscas seguiam-me para todo o lado. Deixei de comer e os miúdos percebiam-me moribundo…Alguns chegaram a chorar…Abalei para morrer sozinho…longe…Para os lados da Damaia…Numa casa abandonada…Tive uma vida de cão, cão completo, com filhos e amigos que recordo. Tenho pena de não os ter visto crescer, mas sei que fui feliz por ter partilhado com eles tantos momentos…Momentos que me ajudaram a partir…

Nota: A história é verdadeira, os nomes também…O pensamento do animal é da minha imaginação....

4 comentários:

Isabel disse...

Ai, ai , ai Paulo já cá está a lágrima.
Parte da tua infância vista pelos olhos de um cão companheiro, amigo, observador, lutador e cheio de dignidade.
Ajudaste-o a partir e ele pelo que vejo acompanhou-te enquanto te tornavas um homem daqueles que não tem medo de sentir.
Ajudou-te a ter boas e más memórias de infância. As memórias são grande parte do nosso presente e condicionam para sempre o futuro.
Ainda bem que o Benfica existe na tua memória e que tu exististe na vida dele.

Lindo e muito sentido este texto.


Isabel

pb disse...

lembraste-me um benfica que tambem existia na vizinhança da casa de meu Pai, das hortas que centravam o bairro ( o terreno ainda hoje existe apesar de já não cultivado, culpa de uma vedação que a Camara colocou )do " bando " de miudos com quem eu brincava nessas mesmas hortas quando ia de visita, nos nossos esconderijos, outros tempos, amigo....Um abraço

Titá disse...

:_)
E agora nada sou capaz de escrever, mas...sempre aquele nosso abraço, capaz de...

naturalissima disse...

Muito curiosa a forma como está contada esta história. Como sempre, muito bem escrita... com sentimento.

Daniela