2006-12-12

Urbe

Seis da manhã, ele acordou, o sol não. No escuro do quarto os números digitais iluminam-lhe a hora. A boca está seca, os olhos também. Torpor que se desvanece, consciência que retorna ao corpo cansado. Foram duas as horas dormidas, porquê o despertar, o despropósito matinal de quem não descansou o suficiente. A roupa que despiu encontra-se arrumada, anormalmente arrumada. Na mesa um copo meio de água. Estende a mão ao interruptor, acaricia-o e hesita, espera pela reacção ocular, desiste do interruptor. Sabe mover-se no escuro, sabe da casa de banho no escuro e encontra-a. A sanita, a banheira, o chuveiro e a água quente…Que bem que lhe sabe a água quente, sangue de lagarto aquecido, fluido interno que lhe lembra a vida. Todos os dias são dias de trabalho, dias de viagem, peregrinação à cidade. Hoje o comboio? O carro? Melhor o comboio. As ruas enchem-se de pessoas, sentidos únicos, cada um com o seu. Estações, paragens de autocarro, ruas e estradas, o mecanismo recomeça. Sem dar conta hoje é ontem e ontem será amanhã e a gravata está desalinhada, o casaco que cobre a camisa pede lavandaria. Lisboa chega sem ele pedir e ele não pede para entrar. Mais estações, mais ruas e prédios e a agência do banco. Sabe de si pelo olhar dos colegas…Isto está mal, nem a barba que lhe custou a fazer o safa, o comprimido que tomou para acordar ainda não se mostrou no seu efeito milagroso.
Está sentado por detrás de uma secretária, tenta organizá-la, organizar-se, mentira que mantém durante cinco minutos, tudo está estabelecido, as ordens são claras e o gerente já lhe disse o que pretendia. Rende-se, abre a gaveta e tira um molho de processos, empréstimos de todos os tipos que precisam ser avaliados antes de chegar ao chefe. De longe a dona Esmeralda procura-o com o olhar tentando captar a sua atenção, consegue-o e ele rende-se. Também ela precisa de ajuda, a idade não ajuda e espera paulatinamente pela reforma. “Ajudas-me nisto? Não percebo nada desta porcaria”, aponta para o monitor, para uma janela de erro, teimosa, que não se deixou intimidar pelas sucessivas escapadelas. “Dá-me só um minuto.”, buscou uma cadeira de uma secretária vazia onde já tinha trabalhado alguém, agora é de todos, à vez, redução de custos que a tanto obrigas, maldita produtividade. O problema não era complicado, um conflito manhoso de um programa mal dimensionado, fecha-se a aplicação e reinicia-se o computador, “Tinhas salvo o trabalho?”, “Estava agora a começá-lo.”, “Um beijo Esmeraldinha.”, “Obrigado meu filho, és um anjo.”, voltou para o seu lugar, desperto, bem consigo próprio pela ajuda prestada aquela velha senhora que tanto o considerava.
Sente falta de um café, a nicotina está domada e já só precisa dela depois das refeições, há quem o inveje por isso. A máquina encontra-se ao fundo da ampla sala, não muito longe de uma máquina de fotocópias de última geração cheia de ruídos suaves e estalidos discretos. A Carmem tira fotocópias com um olhar atento ao visor. Sem se voltar murmura, “Vais tirar um café?”, “Vou!”, “Tira dois.”. Sim a Carmen é uma bela rapariga, a mais nova, ele tenta agradar-lhe sempre que pode. Tem a pele bonita, branca, de um branco que lhe lembra as figuras gregas dos livros de história, lisa, sem nódoas ou marcas que lhe estraguem a matriz. Tem uns olhos sinceros, tão sinceros que não foi preciso tentar para saber que não tinha hipóteses, que pena. A diferença de vinte anos não perdoa a quem não é rico e tem de competir com o belo rapaz que a costuma ir buscar por volta das cinco. “Toma! Se não estiver bom eu tiro-te outro.”, “Está óptimo! Obrigado!”. Finalmente começa o seu trabalho. Por volta da uma da tarde tem metade dos processos revistos. Não vão almoçar todos ao mesmo tempo, revezam-se e ele dá uma mãozinha à Carmem para ela ir comer com o Ricardo, o namorado. Ficou na caixa até às duas e só depois foi para o café onde esperavam por ele uma sopa e dois rissóis. Ainda teve tempo para um bolo, um café e um cigarro. Não admira que as análises estejam uma porcaria, o médico já o avisou, você tem de se alimentar como deve ser.
A vida de solteiro também não ajuda e os jantares são uma mistura de álcool com gorduras em quantidades desaconselháveis, “Olhe o coração! Os acidentes cardiovasculares são cada vez mais frequentes em pessoas na casa dos quarenta!”, “Eu sei doutor!”, “Se sabe não parece…”, conversa repetida nestes últimos dois anos.
Na parte da tarde foi falar com o chefe, tinha noção de ter avançado bem mas não tinha a certeza de ter sido o suficiente para não ficar até mais tarde. Entregou os papéis, explicou os casos mais complicados, os que precisariam de uma segunda avaliação, dos outros, os mais simples, garantiu serem rentáveis à instituição. Esperou numa ansiedade contida, algo que os anos lhe ensinaram, “Está tudo bem. Amanhã logo vemos o resto.”, isto significava que depois de fechar o balcão só teria de ficar mais uma hora. O trajecto para casa pareceu-lhe uma eternidade, a porta de casa o paraíso. Ainda não se tinha sentado quando o telefone tocou.

(cont.)

1 comentário:

pb disse...

Um retrato fiel do dia a dia de muita gente, incluindo o meu, revejo-me no despertar, no trabalho até nos processos para analisar...um abraço Primo