2007-02-06

A Lagoa III

O Pedro jantou cedo. Pouco falou. Os miúdos discutiram aproveitando o espaço livre, demasiado adolescentes para perceber. A mãe repôs a ordem substituindo a apatia paternal. No silêncio, o diálogo dos talheres, o roçar nos pratos, palavras impedidas de sair pelas garfadas de esparguete, pela carne à bolonhesa, pelo queijo ralado.
O Pedro deixou os filhos verem um filme no aparelho da sala. Despediu-se deles e foi para o quarto, a mulher seguiu-o, já sabia do crime. Gabriela deitou-se com ele. Pedro adormeceu de barriga para cima, de olhos no tecto, ela com a cabeça no peito dele, a boca roçando um mamilo, uma mão no outro, fez amor sem ele saber.
Alice dormiu sozinha. O café que bebeu depois do jantar deu-lhe insónias e nem o romance que leu lhe evitou o desconforto da solidão. A história da lagoa não lhe largava a ideia. Derrotada pelo cansaço mergulhou num sono profundo e sonhou. Via-se mãe, mãe das meninas mortas, chorando, gritando revolta. Via-se vingadora, de faca na mão, matando e estropiando, estranhos grupos de culto incerto, obscuros e ruins como convém a quem odeia. Via-se errando na praia de noite, o pinhal ardendo, o lago vermelho…Ela entregando-se ao mar, mar vivo de vaga grande e vigorosa, a espuma espelho do fogo.
O tempo é carrasco e não pára. Parece especialmente cruel quando se dormiu mal, o descanso foi pouco, o sol demasiado cedo ou já quase a aparecer quando nos deitamos.
Mas é assim que funciona, não há nada a fazer. Para a Alice e para o Pedro a noite foi pequena. Alice estava em pior estado quando apareceu no posto, os olhos vermelhos, branca, demasiado branca, os músculos da cara desistindo da expressão. Pedro já lá estava e tirou-lhe dois cafés de máquina, “Aguentas-te?”, “Dormi mal e sonhei com as gaiatas, aquela coisa que tu me contaste não me largou a noite toda.”, “Desculpa, eu sabia que não te devia ter contado.”, ela esboçou um esforçado sorriso, no entanto bonito, “Não sejas parvo, julgas que só tu vais fazer essa associação? Mais cedo ou mais tarde vai andar na boca do povo.”, “Talvez não…Se não houverem mais mortes.”, “Não acredito.”, “Que não haja mais mortes?”, “Que o povo não fale…”. Meteram-se à estrada. Até ao final da semana era aquele o serviço. Passaram pela aldeia, patrulharam duas pequenas povoações e a herdade dos “malandros”, alcunha pela reputação dos proprietários. Demoravam-se sempre um pouco lá, atraídos pela calma do lugar, o jeep em primeira, quase sem pé no acelerador. Os sobreiros espaçados, pontos verdes no espaço aberto, molhados da orvalhada, de cara lavada, o ar limpo e gélido, o céu azul, azul referência, consequência óptica de belo efeito, tudo isto para dizer que hoje este trajecto fez-lhes bem. Preferiram fazê-lo calados, recuperando forças para voltar à lagoa. Mas para já a várzea lugar húmido e que ainda se encontra alagado de chuvas recentes. Depois as bombas, a rotunda e finalmente a lagoa. Está deslumbrante como sempre, aquele calma que contrasta com o rugir do mar por detrás das dunas, aquele ambiente que convida o espírito a acreditar, efeito especial preparado pela natureza. Por momentos quase se esquecem do dia anterior, olhar rendido naquelas águas tranquilizadoras. Mesmo com a presença constante de alguns grupos de crentes o local é silencioso, como se os ruídos das pessoas se misturassem no registo de fundo e perdessem identidade, ruídos sem expressão individual. Até o barulho do motor diesel encaixava, um ronco que ao longe se transforma em zunido, que se perde no espaço.
É o rádio que os acorda, o posto que os chama, alguém que encontrou um corpo junto à saída para as Areias brancas, na picada que divide o pinhal.
(Cont.)

P.S. Desculpem-me os amigos que me costumam ler pelo espaçamento da narrativa. O tempo que dedico ao blog teve de ser encolhido por razões que me são alheias (desculpa para motivos pessoais). Vou no entanto continuar aqui, acabando o que comecei e sempre que possível fazendo mais.
Obrigado por me aturarem e um bem haja a todos!

5 comentários:

Titá disse...

Não interessa o tempo que demoras, interessa sim, que sempre que o fazes, é de uma forma genial e que atinge cada vez mais perfis de uma enorme qualidade de escrita, proporcionando momentos únicos a quem te visita.
Parabéns!
Devias pensar em publicar o que escreves e digo-to muito sinceramente. Sabes bem que se não o sentisse de facto, não to diria.
beijinhos e aquele nosso abraço.

Anónimo disse...

Não tens que pedir desculpa, a verdade é que estás a construir uma história muito interessante e a gente não se importa de esperar para continuar a lê-la!

Um abraço

pb disse...

nem penses nisso, primo, demora o tempo que quiseres, a gente tá cá para te ler, um abraço

Elsa Sequeira disse...

Olá!!
Podes demorar o tempo que quiseres, eu estarei aqui atenta a ler-te! E como é bom ler-te!!

Continua!
Muita força!
:))

Isabel disse...

Cada vez me surpreendes mais, nao só na qualidade da escrita mas tambem na coragem que lhe noto nas entrelinhas... admiro muito mesmo muito a tua escrita e tambem acho que devias publicar a Tita sabe o que diz... sente-o como eu sinto! obrigada tu por escreveres para nós.
É um elevar da mente e dos sentidos ler-te.
Obrigada.

Até breve.

Isabel