2007-01-29

A Lagoa II

A carroçaria estremeceu, lá dentro voaram papéis e caíram objectos, os pneus resvalaram e o jeep deslizou alguns metros atravessando-se na via sem atingir o obstáculo humano. Alice sente o coração batendo junto à boca, um sabor ácido que escorre pela garganta depois de ter subido pelo estômago, Pedro recupera primeiro e abandona a viatura em direcção ao homem que os fez parar. Isso acalmou-a, deu-lhe confiança. Foi ter com o parceiro que se debatia com a atrapalhação de palavreado do interlocutor que berrava, gaguejava, apontava para a berma da estrada onde, numa primeira observação, tudo parecia normal. Juntos convenceram o homem que se acalmou com a presença de Alice. Ela reparou, o Pedro também. O homem queria levá-los para fora da estrada e ela seguiu-o. Ele foi arrumar o jeep na berma. Ouviu-a gritar, o choque, uma exclamação, ela que foi à frente, que não esperou por ele. Correu! Via-os imóveis, o tempo parado…E ele que nunca mais chegava…Chegou, eles imóveis olhando para o chão, para os corpos destorcidos de duas crianças. Não havia sangue, apenas a brutalidade do crime, duas jovens, talvez sete anos, desmontadas por dentro. Quem conhecesse os processos do Santo Ofício certamente encontraria algo de semelhante no estado das vítimas…a tortura sem sangue. Fizeram o que tinham de fazer, comunicaram a ocorrência, cercaram o local com fita e identificaram a testemunha. Veio ambulância e médico da morte e a coisa arrastou-se até à hora de almoço. Almoçaram tarde, desgastados, oprimidos pelo crime. Para Alice tinha sido o primeiro contacto profissional com a morte após quase dois anos de serviço. O Pedro tinha mais anos, de serviço, de idade, também de mortes, de acidentes, disputas de terras, heranças, desavenças entre vizinhos, de tudo o que serve de desculpa para matar. O Pedro era casado e tinha dois filhos, o mais velho com dezasseis anos, tantos como os de serviço. Alice era divorciada de um casamento de dois anos, continuam amigos, sempre foram amigos, casaram para se apoiar, a vida os juntou, a vida os separou. Estas inconfidências para justificarem a calma aparente do Pedro, o nervosismo evidente de Alice. “Isto fica entregue à judiciária?”, “Fica.”, “Conhecias as miúdas?”, “Sim.”, “Quem eram?”, “As filhas de um caseiro.”, “Pobres pais…Filho da puta do gajo que fez isto.”, “Disputas…”, “Disputas?”, “Sim…Entre os da lagoa e do pinhal…”, “Estás a brincar, não estás?”, “Não.”. Tiveram esta conversa durante o almoço. Depois disto só ela falou, ele limitou-se a ouvir acenando que sim e que não. Alice não estava satisfeita, queria saber mais. Ele estava arrependido de ter falado, era um assunto tabu sobre acontecimentos passados. Era um jovem guarda quando essas pessoas morreram queimadas. Falou-se de acidente, de pacto com o diabo. Passados três dias foram encontrados mortos dois jovens namorados numa situação em tudo idêntica à que haviam acabado de presenciar. Durante os meses seguintes houve mais algumas mortes, na lagoa, no pinhal. Fizeram-se patrulhas, as pessoas deixaram de ir para lá e de repente tudo acabou. Terminou o que começara e explico-lhe o que sabia, o que isto lhe trazia de angústia, o medo de tudo se repetir. “E nunca apanharam ninguém?”, “Nunca.”, “E suspeitos?”, “Houve de todos os tipos, mas nenhum aguentava tamanha dispersão de vítimas sem relação, quase uma lotaria. Depressa passavam a outros até que tudo terminou e eles terminaram também.”, “Pensas mesmo que isso se vai repetir?”, “Não sei…Sei que aqueles lugares não me deixam descansado.”, “Estás a deixar-me nervosa.”, “Desculpa, estou a ser estúpido e a assustar-te sem razão.”, “Não faz mal. Eu é que insisti…”, “Vamos embora…Deixa estar que eu pago…Pela conversa mórbida…”. Ela riu, ele apenas sorriu. Faltava a tarde para acabar o dia, ele sentiu falta da mulher, dos filhos, ela sentiu medo de passar a noite sozinha.

6 comentários:

pb disse...

Decididamente, primo, tens o dom da escrita, deixei-me levar pela leitura e imaginei-me no local do crime. Muito bom !! um abraço

Elsa Sequeira disse...

olá Guerreiro1

Ainda estou arrepiada com a emoção!
Parabéns!
Adoro ler-te!!!

Muita força pa ti!!

Bj
:))

Titá disse...

É delicioso ler-te, reler-te e sentir.
Um beijo para todos e aquele nosso abraço

Conceição Bernardino disse...

Olá,
Queria dizer que os meus blogs sumiram por isso resolvi fazer um novo,
Onde constam todos os meus temas, tanto poesia como prosa e textos vários...
Obrigada e peço-vos desculpa pelo transtorno
Estou a faze-lo conforme posso, não me esqueci de ninguém
Beijinhos
Conceição Bernardino

Meu novo blog- http://amanhecer-palavrasousadas.blogspot.com

Que posso eu dizer se os meus olhos não falam!
Transmitem emoções, a essa beleza inconfundível
Que as palavras me transmitem
Aqui estou eu para te dar o meu gesto de carinho
Soberbo...
Obrigada pela vossa compreensão

Anónimo disse...

A história começa a tomar forma. Fico a aguardar a continuação. Estou a gostar imenso.

Um abraço

Titá disse...

Saudades...