2007-01-08

Urbe V

Passou a tarde a observar a Carmem, a pensar na Teresa a juntá-las, fundi-las numa só, filha e mãe, mãe e filha. Agora sim reparava no cansaço, uma fadiga elegante de disfarce, dissipada nos gestos, diluída nas expressões faciais, no entanto evidente, pelo menos para a mãe. Será este “sexto sentido” o segredo de ser “Mãe”, sentido, segredo, magia e prático, eficiente. Imaginou-a mais velha, como a Teresa, imaginou a Teresa mais nova, como ela. Do seu ponto de vista, ambas as mulheres eram atraentes e ter consciência disso deixava-o nervoso. Há muito que não se sentia assim, atraído, duplamente atraído. Se queria cumprir com a sua palavra teria de pôr prioridades na acção e a primeira delas exigia de si alguma subtileza. Foi com muitas dúvidas que começou a conversa com a Cármen, “Estás cansada? Mesmo cansada ficas bonita…”, pergunta com resposta sabida preparando o desabafo, “…Ficas bonita…”, que não a deixou indiferente. Ficou mais frágil, baixou a guarda, primeiro os olhos que olharam doutra maneira, depois as palavras, “Obrigado! Só tu para me alegrares o dia.”. Eram três e meia da tarde quando esta conversa teve lugar. O Ricardo não a foi buscar e ela saiu com o Osvaldo. Foram a uma pastelaria lanchar, “Pago eu!”, disse ele, ela sorriu, quase que riu, “Está bem!... Eu ia na mesma.”, também ele sorriu. Foi entre bolos e sumos que ela lhe confidenciou os tempos menos bons que estava a passar, o dinheiro que não chegava, para a casa, para água, para a luz…Para o vício…“She don’t lie…”, para os vícios do Ricardo, o Ricardo que pouco fazia além de se julgar actor, dormir lá em casa, comer lá em casa, drogar-se lá em casa com o dinheiro dela e que ultimamente já nem a procurava e trazia na roupa outros cheiros rivais. O Ricardo que ela uma vez apanhou na sua cama com um colega de trabalho, coisas de actores, que a convenceu a ficar, a cheirar, a beber com eles. Aquelas duas semanas de baixa, sem sair de casa, sem dormir…Comecei a cheirar todos os dias, mas não me injecto!...Fico em casa a ouvir música, a escrever, a desenhar…O dinheiro não chega…Somos dois a gastar e só um é que traz dinheiro para casa…
A mãe acertara em cheio. Ela estava desesperada, não tinha experiência e poderia dentro de pouco tempo forçar-se a decisões perigosas. Para já a oferta de ajuda. Levou-a para sua casa, para lhe passar um cheque com o seu nome. Nessa noite compraram uma pizza e beberam garrafa e meia de vinho alentejano. Sentaram-se no seu sofá da sala, ligou o som da aparelhagem, baixo, uma guitarra acústica, sem vozes, só guitarra, ela sentada no sofá e ele que se sentou junto dela, abraçou-a, ela abraçou-o…Acordaram na cama dele, com o mesmo abraço, a mesma ternura, o mesmo desejo carente.
A vida não mudou, ela ainda gostava do Ricardo, do vício. Ele teria de acelerar o encontro com a mãe dela. Após três contactos pessoais com Teresa, garantiu-lhe um encontro com Carmem, seria em casa dele.
O encontro deu-se à noite. Ele estava em casa com a Carmem quando a Teresa apareceu, maternal, linda de ternura, “Esta senhora precisa falar contigo…Confia em mim”, “Sim!”, “Vou sair. Volto às onze.”. Quando voltou não encontrou ninguém. No dia seguinte a Carmem não foi trabalhar, falava-se em carta de despedimento. O telemóvel não atendia, a casa dela desabitada. Assim foi durante seis meses. Custou-lhe a falta da Carmem, chegou a arrepender-se, o que poderia ele fazer. Uma noite recebeu um telefonema, era a Teresa, pedia desculpa, estava em Itália e levara a filha com ela, estavam bem, “Não se preocupe que você fez o que tinha de ser feito. Ela está aqui ao pé de mim e quer falar consigo.”, “Osvaldo?”, “Estás bem Carmem?”, “Estou! E tu?”, “Porquê tão depressa, sem palavras, sofri…”, “Eu também!”, “O que é que a tua mãe te disse para teres decidido tão depressa, sem um adeus?”, “Disse-me que ambas tínhamos o mesmo pai, que éramos uma espécie de irmãs com mãe diferente, que a diferença era ela ser minha mãe.”.
Despediu-se dele e prometeu que um dia o visitava.

Ele chorou...Chorou com pena de as perder, a elas que se tinham reencontrado. Foi um choro interior, que se desfez com imagem das duas mulheres, felizes, em Itália.
Adeus Carmem, adeus Teresa, por mim levanto-me ás seis e vou trabalhar!


FIM!

3 comentários:

Isabel disse...

Adeus Carmen, adeus Teresa, por mim levanto-me ás sete e vou trabalhar.

Olá Paulo.

Todas as histórias que escrevemos tem um fim, as histórias da vida ainda acredito que as haja eternas, infinitas, até à morte.

A tua história vai-me deixar saudades de tanto que gostei dela.

As tuas personagens são gente que vive, que anda por ai, com as quais nos cruzamos.
São histórias com personagens assim as que mais gosto.
Imagino-as cruzarem-se comigo quando atravesso a estrada, na mesa ao meu lado ao almoço, à minha frente na caixa de supermercado.

É um mérito incrivel meu amigo ter personagens assim e dar-lhes vida.

Sei que já to disse e repito. Não pares de escrever assim.

O fim soube a pouco... queremos mais. Eu quero!

Até breve.

Isabel

Elsa Sequeira disse...

Olá!!!

Passei por cá!!
Tocante! Muito tocante! Senti cada palavra!!
Obrigado por este momento!!!

Tudo de bom!!

:))

Titá disse...

Só um sorriso e aquele abraço