2007-02-13

A Lagoa IV

Era o Pedro que conduzia, foi ele que engrenou as mudanças que rentabilizaram a aceleração. O Nissan Patrol não era dado a grandes velocidades embora fosse dotado de um motor potente. O barulho da máquina inundou o habitáculo. Os balanços tornaram-se instáveis e perigosos, as curvas no limite do equilíbrio. Porquê tanta pressa? Os cadáveres não têm urgência. A necessidade de respostas, essa sim, provoca-nos tremores, dependências psicológicas. É essa a urgência. As luzes vão acesas, avisando prioridade a quem quer que se atravesse, curva à esquerda, curva à direita e contra-curva, recta até à via rápida, saída para as Areias Brancas, desaceleração, redução, curva a noventa graus, entrada em estrada de terra e areia. Esperavam ver alguém a indicar o local, gritando, talvez em pânico. Não se via ninguém. Travou bruscamente e só agora olhou para a parceira, “Aonde?!”, “Cerca de quinhentos metros, na berma…”. Arrancou devagar. Sim, o vulto percebia-se bem, ali estava ele mais à frente, impossível de não se encontrar, borrão negro no amarelo da areia. Estão perante um corpo do sexo masculino enrolado numa posição fetal que lembra a gestação, o que confere um ar de fragilidade ao cadáver. Percebe-se que internamente se encontra desconjuntado, desajustado nos seus alinhamentos naturais.
Quem o encontrou? Quem deu o alerta? O Pedro não foi. É casado, tem dois filhos, vive com a mulher, é alto de um metro e oitenta e oito, cabelo muito curto e preto, não tem barriga, mesmo demasiado magro. É escuro de pele. Se não fosse tão alto e tivesse bigode ou barba poderia passar por magrebino, e pode não ser totalmente mentira visto as suas origens sulistas, família antiga da região de Silves.
Alice também não. Alice é divorciada, não tem filhos, não tem namorado, vive sozinha e é do norte, de Chaves. Alice é alta de um metro e setenta e cinco. Tem a pele muito branca, cabelo loiro e cara de menina. Talvez seja este o motivo da sua atitude agressiva, de uma masculinidade encenada, com que encara as adversidades, sejam elas profissionais ou pessoais. O respeito é algo de muito importante para quem se quer dar a ele e ela quer. É fisicamente bem constituída, não é magra, tem um sorriso aberto e olhos azuis cor do mar em dia de Verão. É bonita, cara equilibrada nas distâncias que definem a beleza, raiz normanda onde sobressai uma boca bem desenhada, de lábios grossos, que faz do seu sorriso a sua imagem de marca entre os mais chegados, imagem de boa disposição e alegria que às vezes lhe falta.
Quem o encontrou não foram Pedro e Alice, estes vieram de chamada. Talvez a voz feminina que telefonou para o posto e que desligou rapidamente. Sim, essa sim comunicou ao piquete a existência de um cadáver, sem pormenores à excepção do local.
O alerta foi dado de pouca fé, adivinhava-se a brincadeira. Neste momento os dois elementos da GNR presentes no local sabem que isso não é verdade. Sabem também que o povo vai começar a falar. Falharam as expectativas do Pedro, deu-se razão à Alice.
A tudo nos acostumamos, também à morte. Alice foi profissional na comunicação ao posto, como no outro caso actuou em conformidade. Porém mais calma, atenta na observação dos detalhes, do cadáver, do local e dos acessos. Os dois procuram registrar tudo o que possa ser útil para a investigação, para a judiciária, para eles. Alice tirou do bolso um pequeno bloco e uma caneta que se percebe ser objecto pessoal, caneta fina, de cor matizada em verdes, só para referir o carinho com que a escrita lhe sai, a bonita caligrafia, esguia, desenhada, de quem é cuidadoso e perfeccionista. Pedro olha em volta, para o pinhal que se adensa do lado esquerdo, para a estrada de areia que o separa do lado direito, também ele pinhal, para a frente, em direcção ao mar que se pressente numa faixa cinzenta escura por cima duma lomba da picada, para a origem desta, no sentido oposto, no acesso à via rápida por onde vieram. Esta total abrangência visual, este cheirar o ar, fê-lo cerrar os olhos, como se nesse gesto dissecasse os dados recolhidos, os organizasse, alinhasse, desse sentido, apontasse uma direcção.
No entanto esta tarefa vai pertencer a uma brigada especial recentemente formada no corpo da GNR e que a titulo experimental vai trabalhar em conjunto com a judiciária.
Quanto a eles iram continuar as rondas que certamente vão ser reforçadas. Para já, acabam a manhã a falar com o sargento e com um inspector da Judite que chegou na noite anterior.


(Cont.)

2 comentários:

Titá disse...

Simplesmente genial!!!!!!!!
Incrivel como escondeste tantos anos este dom.

Beijo meu irmão. Muitas saudades e aquele nosso abraço

pb disse...

de facto, meu primo tens o dom da escrita, a genialidade dos pormenores é soberba, continua assim e porque não um livro feito destes pequenos contos ? um abraço