2007-02-22

A Lagoa V

Começou a chover. O sol de Inverno desapareceu e deu lugar ao cinzento que, uniformemente, preencheu o céu. A chuva não é grada, pelo menos por enquanto. Mais tarde se verá. Nos cafés começa-se a falar do assunto, procura-se nos jornais diários a informação que falta e que continuará a faltar. Sabe-se de jornalistas no Hotel Novo, imprensa escrita que a televisão e a rádio andam noutros Carnavais. Nem só nos cafés se fala, mas serão sempre estes locais os privilegiados para debater acontecimentos.
Numa sala interior, Pedro e Alice ainda se encontram reunidos com o seu Superior e com o inspector da Judiciária. Manifestaram interesse em ajudar nas investigações, foi um interesse genuíno, de quem tinha visto três cadáveres em menos de vinte e quatro horas e queria respostas. Sim, iriam ter esse facto em consideração, mas para já era tudo. Saíram desiludidos. Compraram qualquer coisa para comer e por sua conta e risco decidiram voltar ao pinhal.
Para os lados da lagoa o vaivém dos crentes continua. Dependentes do que aprenderam sobre o líquido milagroso mantêm as romarias. Pode ser impressão, e dai talvez não, os semblantes estão, como se costuma dizer, carregados, carregados de medo, o medo que desperta os sentidos e nos põe alerta. Alice pergunta, “Conhecias o homem?”, “Não pessoalmente, mas conhecia-o de vista.”, “Quem era”, a pergunta seca, de quem não devia precisar colocá-la. Foi necessário, dai a secura, “Não ouviste o sargento?!..”, a resposta irónica, também ela seca, “Ouvi! Fiquei a saber o nome, a idade e a profissão.”, “Não te chega?”, “Não!”, o desencontro, situação invulgar entre os dois, diz quem sabe que estes dias também são precisos, para aferir das relações, sejam elas de amizade ou não, “Está bem!...”, o Pedro rende-se, ou finge fazê-lo.
Disse-lhe que o homem tinha perdido a mulher aquando das primeiras mortes, foi uma das vítimas que apareceu queimada. Quando isto aconteceu o filho mais velho de Pedro estava prestes a fazer dois anos. Disse-lhe que o homem tinha dois filhos, um rapaz, uma rapariga, o primeiro foi para França e nunca mais voltou, a filha ficou-se pela rotunda, avenida de prazer, rastos negros nos braços, nas mãos, nos pés, no pescoço…Também ela, de alguma forma, não voltou. Disse-lhe que o homem começou a beber até parar por momentos para tratar de uma crise hepática depressa voltando à rotina. Falou-lhe do trabalho que o homem abandonou e nos desenrasques de sobrevivência até que há dois anos tinha atinado. Uma mulher, viúva recente, tirara-o do vício, arranjara-lhe um emprego decente na empresa onde o marido havia sido director, trabalho menor é certo, mas digno e razoavelmente bem remunerado. As más línguas ligavam-na a cultos satânicos perpetuados no pinhal e acusavam-na da morte do marido, conhecido peregrino dos banhos da lagoa, associaram o cancro fatal a rezas e maldições. Isto era o que o povo dizia e o que ele sabia. Agora, com a morte do Rafael, vão dizer muito mais.
Alice ouviu com atenção, sem interrupções, e mesmo depois do Pedro se ter calado, manteve-se em silêncio durante mais algum tempo, “Quer isto dizer que anda tudo à volta do mesmo?”, a palavras vieram-lhe reconciliadoras, “Depende do ponto de vista.”, a secura foi-se, manteve-se a ironia, “Não brinques comigo. Tudo passa por essa gente que se reúne para evocar sei lá o quê…Uns dentro de água, outros com fogo…outros com…Paranóias!”, voltou-lhe a irritação, “Existe mais gente interessada no conflito desde que ele leve à destruição das árvores junto ao mar.”, ele sabia que ela iria ficar interessada e menos agressiva, por esse motivo prolongou a frase num tom suspensivo, “Que gente?”, o efeito foi o pretendido e ele continuou, “Gente que constrói, gente que manda, gente de dinheiro, gente que quer transformar a lagoa numa estância turística…”, deixou a frase no ar, “Existem assim tantos interesses?”, contente por a ter de volta prosseguiu, “Também se fala numa fábrica, mas dessa têm tratado os ecologistas…”, pausa, “Mais alguém?...”, “os suspeitos do costume, drogados, contrabandistas e traficantes que se servem da praia como local de desembarque…Mas esses estão mais interessados em não levantar ondas e para mim não têm nada a ver com o assunto.”, “Falas como se os conhecesses…”, desta vez foi dela a ironia, “E conheço, após alguns anos e num meio pequeno fica-se a conhecer muita gente”, Pedro respondeu mostrando aborrecimento, “E isso não te chateia?”, ela espetou a faca mais fundo, “Aprendi a ser uma pessoa normal quando dispo a farda. À civil os meus ouvidos são civis e a minha boca discreta.”, ele estava a levar a coisa a peito, “Não me estás a dizer que os deixas andar?...”, “Estou a dizer-te que também tenho vida para além da farda. E se queres um conselho digo-te que é melhor separares as águas ou serás uma eterna estrangeira.”, quem assim falou, falou danado, “Achas que é fácil fazer o que dizes?...”, e que dizia ele?...”Não!...Mas é a melhor maneira.”, ela não lhe perguntou que outras maneiras havia, mas não ficou convencida…E o Pedro sentiu-se ofendido, desrespeitado, ou algo entre as duas…Nem sempre é fácil explicar aos mais novos que os anos de serviço funcionam como analgésico…Nem sempre é fácil explicar aos mais velhos que pode haver quem faça a diferença, em qualquer dos casos é uma questão de tempo.
Separaram-se de mau humor. Ele vai dormir a pensar no caso, ela vai pensar na conversa que tiveram, principalmente na última parte da conversa.
Durante a noite dois vultos circularam no pinhal e apesar da chuva deixaram acesos três candeeiros a petróleo. Do lado da lagoa os peregrinos começaram a usar facas dissimuladas na roupa, principalmente os mais novos.
O que vos vou contar sei porque sou o narrador e é dever do narrador saber tudo…Ou quase…Neste caso sei que esses dois vultos arrastaram um corpo para a beira da água…Junto à lagoa.

(Cont.)

3 comentários:

pb disse...

bem, primo, isto promete !! fico a aguardar a continuação !! um abraço

Rocha de Sousa disse...

Meu caro,
Já nem sei há quanto tempo «não nos
vemos»! Você um dia ou dois deixou
marcas no meu blog DESENHAMENTO e entretanto criéi outro, CONTRUPINTAR02, onde coloco apenas
as minhas obras plásticas, fotografias, extractos dos livros que tenho publicado (o último A CULPA DE DEUS).
Bom, mas isto parece publicidade e nãuma urgência em dar-me a conhecer
e quer conhecê-lo. Fiquei um pouco
atordoado com esta patrte do seu texto continuado (LAGOA V), quer pela forma, por uma certa «voz branca» do narrador, quer pelo clima de «suspense», a cadência da
morte e de quem é seu «tutor», o desejo de uma resposta, a conotação
com os desastres principais da vida.
Com mais tempo venho cá fazer «flashback»: «a nossa vida é um somatório de esperas».
As minhas saudações e parabéns
Rocha de Sousa

Elsa Sequeira disse...

Ui!!!

Que suspense!!!!
´Continua!!!!

Beijo!
:)