2007-04-12

Três pequenos textos sobre a vida… Sem nexo…




De faca na mão à procura do destino risquei todos os carros que encontrei no caminho da estação, carros grandes e pequenos, de cores híbridas, disfarçadas pela noite. Faca de cozinha com vinte centímetros de lâmina, os alarmes tocando nas pressões maiores, nas penetrações profundas. Pessoas à janela e a faca que desaparece no blusão de ganga e o blusão de ganga desvanecendo-se no fundo da rua, tal como os carros todo ele híbrido na cor. As montras apelativas e as marcas nas montras, as marcas de gordura do meu nariz no vidro fabricado vitrina, procurando tocar nas outras marcas. A polícia que passa depressa, o desinteresse despercebido, figura diluída, alguém que grita “Foi ele!!!”, demasiado tarde…O movimento do corpo deixa cair a faca que volta a riscar na rua seguinte. Um casal em silêncio, olhos nos olhos com a loucura, o branco demasiado branco, dois círculos pretos, aberturas escuras, buracos negros desesperando por luz. O casal que é sombra, tudo é sombra, também eu sou sombra no meio de sombras. A estação está guardada, por guardas, por sistemas de vigilância, por silhuetas suspeitas que me fazem recuar, o recuo físico da lâmina no avanço do resto do corpo que atravessa o átrio rumo a nenhures…








Inventei margens junto ao rio, só para ir de uma à outra. Não construí pontes nem jangadas, mergulhei nas águas, ontem revoltas, hoje paradas. Nadei até me cansar e quando me cansei nadei mais…Tenho lama e lodo nas mãos, marcas de quem esgravatou para subir. Nas unhas sujas bocados das margens que alcancei. Percorri terrenos alagados onde enterrei os meus pés, fossem eles de barro e teria lá ficado. Tenho sede dos pântanos, dos mosquitos e suas bombas de sucção, motores insaciáveis na imensidão do meu sangue. Cortei canas por apelo, por amor à vara verde. Soubesse eu tocar e teria feito uma flauta. Das varas fiz bordões que levaram os meus passos, passos que me levaram…







Hoje jantei junto à televisão. Ligada que estava informou-me das coisas, coisas importantes. Disse-me de cursos de ministros, de professores de ministros, executores de politicas, da existência de um título que os defina, lhes dê importância. Falou-me de outros que não são ministros mas desejam ser ministros, da sua indignação perante a falta de confirmação das valências do que entre todos é o primeiro. Explicou-me que no ecrã as pessoas tornam-se mais pessoas, que entre filhos abandonados existem uns mais abandonados que outros, com pais mas sem pais adoptivos presos, sem o apoio da nossa opinião. Fez-me acreditar que precisamos de mais um aeroporto, porque três é a conta que Deus fez, porque sim, porque mesmo sem dinheiro podemos fazer romarias nesses locais de culto, olhar o progresso e sentirmo-nos nele. Convenceu-me que na agricultura os problemas são os agricultores, que não souberam semear o dinheiro que receberam, fadado que estava ao crescimento, desperdício de boa vontade. Explicou-me que lá fora acreditam no caminho que seguimos mesmo que nós não saibamos qual é, tudo uma questão de fé. Mostrou-me que na assembleia também existem seres humanos com virtudes humanas e defeitos humanos (Um abraço à Odete pela sua maneira honesta de ser, mesmo quando é inconveniente…Vou sentir falta), que também se vão embora com mais de vinte cinco anos de trabalho e possivelmente sem entrada directa numa das grandes empresas sedentas de assessores, paciência…Contou-me a história de um parto numa ambulância, no Alentejo, a mim que não sei de ambulâncias mas sei o que é levar uma mulher a parir, a cem quilómetros de distância do local de residência, noite passada numa pensão, “Ainda não é hoje, o melhor é ir-se embora e vir amanhã.”, eu que não fui, que a deixei lá para ir dormir num quarto de aluguer, “Pode vir que vai nascer.”, sete horas da manhã, “Tenho tempo para pagar?...”, passaram-se mais de seis anos e esta já era a realidade, mesmo quando fizemos um cordão humano e a ministra da saúde, Maria? De Belém? Que nome mais apropriado, nos disse que tínhamos de foder mais, não nascíamos em número suficiente….Poderemos nós morrer em número suficiente para garantir as reformas?
Passaram sete horas desde que abandonei o ecrã amigo. Depois disso fiz o resto do serviço, desliguei equipamentos e luzes, fechei portas, entreguei chaves vim para casa e estou a escrever (Decididamente a hora não ajuda). Apeteceu-me desabafar…Os textos ainda não estão publicados mas é esse o seu destino…Hoje, ao fim de uma semana sem me ligar ao mundo deixo aqui o meu testemunho.

5 comentários:

Titá disse...

Meu irmão,
Tive que te telefonar de imediato. Não suportei este aperto no peito, esta vontade de te abraçar, esta saudade.Quis correr para aí, abraçar-te e dizer-te olhando nos olhos o quanto és importante e crucial na minha vida.
Quando era pequenina e me perguntavam o que queria como prenda no natal ou nos anos, eu dizia sempre: quero um Mano. Mas nunca, nunca imaginei um Mano tão especial quanto Tu. Excedeste qualquer expectativa e sou grata por apareceres na minha vida.
Choro desalmadamente...mas de alegria. Não podia ter melhor irmão do que tu.
Falas do teu receio de Rita saber de um tio não verdadeiro. Deixa-me dizer-te que há poucos irmãos verdadeiros que sejam tão irmãos como nós dois e isso, obviamente está a ser transmitido a nossas filhas.
A Deolinda, minha querida cunhada sabe que é só um telefonema e estarei aí, pronta para o que ela precisar.É uma mulher extraordinária, a quem devo muito. Devo-lhe o facto de te ter de "volta" e por ela farei tudo. Mas sei também, que tudo correrá pelo melhor, pois se há alguém que o merece, é Ela.
Para todos Vós, minha familia Alentejana um enorme beijo e para ti Meu Irmão Guerreiro, aquele nosso abraço...aquele que dá para sentir o coração um do outro a bater de alegria e de orgulho pela familia que somos.

Titá disse...

Agora li o post... e que dizer? Excelente. Genial!
Cada dia que passa escreves melhor.
Mais do que isso, cada dia que passa, ao escreveres, és mais tu.
Aqui, nestas três histórias, vi três fases de uma história de vida, que é a tua.
Vi uma ponte entre as várias margens de um rio, que corre certo e corente, de um rio que em certos momentos tem cascatas e agitação, mas que noutros, tem tranquilidade.
Vi o rio de uma vida, que apesar de contornar serras, planicies ou planaltos tem a coerência e a integridade de levar sempre em si uma água limpida, integra, vertical e verdadeira como um Homem que conheço e que há anos chamo de, meu Irmão Guerreiro.

Titá disse...

Ah esqueci-me de novo de te dizer.
mano, visita o http://esquilado1268.blogspot.com/

é o Blog da Ritinha sobre os escuteiros dela.
Ela está a precisar de incentivo.
Bjs

Isabel disse...

Ai Paulo Paulo que te dizer, é mesmo assim tal e qual.

Vi tudo o que viste tal e qual no primeiro texto e como tu fui sombra... não gosto de ser sombra assim. Gosto de ser sombra quando não estou rodeada de sombras. Gosto de ser sombra para ver gente.
Não gosto de ser sombra diluida no meio de sombras onde gente não há.
Não gosto de me diluir.

O do meio nem preciso dizer-te tem tudo aver comigo, vi-me , revi-me, olhei-me, mirei-me, encarei-me e sim, mais uma vez te digo, sim fui, fiz tudo isso, andei por ai, nadei nesses rios, enterrei-me nessa lama, caminhei, construi, precorri, afundei, mergulhei e sobrevivi e tambem tenho saudades dos pantanos e de esgravatar a vida e pela vida.
Sabes tive um professor de spinning que dizia, Isabel quando te faltar a força nas pernas pedá-la com a alma. Eu pedalava claro! Era fácil era assim que vivia e vivo, quando me falta força no corpo vou buscá-la à alma...
Licões que aprendemos nos pantanos!

O terceiro que dizer sem ser inconveniente como a querida Odete?
Sabes Paulo eu não tenho filhos, tenho a Carolina que é como se fosse mas eu sei que não é. Gostava de lhe deixar algo mágico que pudesse guardar na mão e quando a vida fosse dificil abrisse a mão e voilá, algo belo surgisse. Gostava de palntar na mão dela algo que fosse uma sementinha de bem, de bonito, algo de meu na vida dela que eu não criei mas gostava de ajudar a sobreviver neste mundo tão cada vez mais vazio.

Preocupa-me a televisão... algo nesse écran "amigo" a fará um dia distrair-se e soltar a sementinha que lhe fui depositando entre os dedos.

Vou tentar ensiná-la a não largar essa sementinha nunca.

Como vi, no teu poema para a tua mãe, tu não largaste a sementinha que ela depositou na tua mão.

Ela adorou o beijo que lhe enviaste por certo e eu adorei estes momentos aqui contigo.

Escreves como vives... como eu!

Isabel

P. Guerreiro disse...

À minha irmã e à Isabel

“Conheci rios.
Primevos, primitivos rios, entes passados do mundo, lodosas torrentes de

Desumano sangue
Nas veias dos homens.

Minha alma escorre funda como a água desses rios.”

José Luandino Vieira
Do livro “De Rios Velhos e Guerrilheiros”

José Luandino Vieira conta a história da guerra na boca de quem a fez entre rios, atravessando margens, subindo nos leitos, correndo de uns para os outros.

Do Tejo para o Sado e para o Mira lá mais ao sul, em tempo de paz…Outras guerras…
Cada um de nós tem os seus rios, as suas margens, as nascentes e os locais onde desagua…O rio é uma belíssima metáfora…

A abraço a esses rios amigos que nos compreendem….