2013-02-21

Para memória futura

Dia vinte do mês de Fevereiro do ano dois mil e treze. São dezasseis horas, um pouco mais se olharmos para os ponteiros com atenção. Cheira a enxofre, um cheiro ligeiramente ácido, um pouco adocicado com laivos de podridão, a podridão de águas paradas em tempos pré-históricos. Todos os passos que dou são contados, não por mim que não tenho paciência, pelo outro que anda cá dentro, que me empurra em sentido contrário, que me grita palavrões numa língua desconhecida. Deixo-me embalar pela gritaria, sou levado pela brisa que transporta os cheiros, o meu cheiro mistura-se e às tantas não o reconheço, fico com a sensação de ter perdido a identidade, melhor dizendo, fico com a sensação de ter mudado de identidade, eu sei que é só uma sensação, mas é muito forte. Olho de viés para os pêlos da minha mão, estão ligeiramente arrepiados, são pêlos que apareceram com a idade, definiram-se por ela, deixaram que ela os colorisse de preto, o sol logo os há-de aloirar quando chegar a Primavera, antes disso mais um ano terá a sua passagem assinalada. Sim os pêlos estão arrepiados, pressuponho que seja da febre, do mal-estar arioso que me vai corroendo, do medo de ter medo, sim porque houve alturas que só sentia medo e o medo era puro, era arrepio de loucura, quando somos loucos sem saber que por lá passámos. Depois tudo se torna racional e o medo deixa de ser loucura, apenas uma lacuna a que voltamos quando pensamos não ter destino ou apenas porque pensamos não ter destino. Hoje o medo não tem piada e eu riu-me na mesma. Não é riso de exorcista, é um riso parvo e sem sentido, um rir do que sou e do que fui.


E as horas passam, já não são dezasseis horas. O lugar vai morrendo do movimento diurno, restam dez almas, talvez nove, percorrendo corredores de ciência fabricada, executada com a minucia de profissionais treinados. O rabo não abana, por enquanto, tudo é uma questão de tempo, sinto um ligeiro agitar de anca, uma vontade de ladrar, quem sabe, morder ou apenas rosnar, aqui quem passa sou eu, não as caravanas. O jantar está na mesa, somos nove, agora que confirmo o número certo retiro os talheres como quem subtrai uma unidade ao todo que é só parte. Três gotas de picante é mais que suficiente, a caveira não existe, apenas a corrosão ácida do óleo alaranjado, turvo de finezas domésticas, “feito à mão” finjo ler enquanto alguns bagos de arroz escorregam pela garganta esfomeada. Sim, está tudo controlado, vamos fumar um cigarro? Queres café? Quantos é que são? Já passam das vinte e uma. Lá fora brilham três enormes velas, duas finas e uma mais grossa, talvez por ser a mais nova se julgue mais importante, eu também julguei que era, quando era mais novo, hoje essa importância reduz-se ao que consigo ver, à nesga da coisa que é a vida.

Vinte e quatro horas ou o começo de um novo dia. Abres o livro e escreves 00H00m, deixaram de ser vinte e quatro e o dia também mudou de numeral. Eu sou Deus quando decido destas coisas, no livro que abri os santos atropelam-se com vontade de chegar ao fim. Lá fora ouve-se o barulho de um motor, os faróis da carrinha atravessam as vidraças espelhadas, como lanças em corpos moles numa batalha que nem chegou a ter destino. Fumo mais um cigarro e bebo mais um café, quantos já bebi hoje? Não sei, cinco seis, sete, perdi-lhe a conta por volta das três. É sempre assim? Não, apenas quando me lembro de os contar.

Apago as luzes uma a uma, quer isto dizer que percorro corredores infindáveis à procura de quadros inundados de disjuntores. A madrugada que é noite fica mais noite. Já passam das quatro e não se ouvem passarinhos. Ouve-se sim o ronronar de máquina feita de máquinas, a besta que finge dormir no meio da penumbra. Eu sinto-lhe a respiração assim como sentia a respiração da outra besta, a de Lisboa, junto ao rio, quando ia para o terraço ver nascer o sol, o sol que aparecia por detrás e iluminava a margem sul, o Barreiro, o Seixal, o mar dito de palha porque alguém assim o batizou. Vou sem pressa, sentido a borraceira encharcar-me o corpo. O outro, que ainda está cá dentro, apressa-me o passo mas eu não me deixo intimidar, inclino-me para trás, deixo que os pés se arrastem até, até entregar a chave que me liberta. A sensação de que tudo acaba com uma assinatura, boa noite, boa qualquer coisa que mereça, que valha a pena. O automóvel espera no fundo do parque, tudo tão nu, tão plano, dá-me vontade de agarrar todos aqueles reflexos que começam no metal e se perdem nas árvores. Prometi a mim mesmo que um dia conseguiria representá-los, folha de papel branco e as cores bailando no fundo negro da chuva de Inverno. Tivesse eu a magia e a promessa não seria um abraço por dar, a visita que não se faz.

Dia vinte e um do mês de Fevereiro de dois mil e treze. O automóvel já está estacionado à porta, são seis da manhã e ainda não tenho sono. É tão difícil ter sono quando se quer. Já fumei mais dois cigarros. Vou à casa de banho e procuro os olhos vermelhos que anunciem o cansaço. Vejo um homem com barba por fazer, rugas, cabelos brancos, mazelas da vida que atestam da minha passagem, mas não vejo os olhos vermelhos. As palavras continuam a ser escritas e eu já não as quero escrever. Aqui quem manda sou eu…Boa Noite!

2 comentários:

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