Parece que houve discursos. Um em particular deixou meio
mundo político a discutir significados. Por ter sido proferido pelo
representante máximo da República Portuguesa esperava-se que tivesse um
significado especial, pacificador, galvanizador, aglutinador de vontades lusas.
Tenho para mim que ninguém tinha essa esperança. Esperava-se sim um assumir das
nossas debilidades, da nossa dependência, da nossa subserviência perante os
poderes económicos ditos “mercados financeiros”, vulgo “credores”. Consagrou-se,
num recheio de cravos caídos, a inevitabilidade da nossa perda de soberania. Chocados?
Diria eu que a maioria de nós, cidadãos avisados e despertos, não terão ficado
surpreendidos, mas eu já não conheço o povo a que pertenço, muito menos as suas
“maiorias”. Confesso que não ouvi, que desliguei, que fui trabalhar, privilégio
raro nos dias que correm. Hoje ouço os ecos de tais palavras discursivas e justifico a minha surdez.
O meu 25 de Abril sempre teve significados múltiplos, a
começar pelo facto dos meus pais fazerem anos de casados nesse dia. A minha mãe,
que partiu precocemente num dia de Março de 1989, volta-me sempre à memória.
Pelos almoços festivos dos primeiros anos da década de setenta, pela madrugada
desse dia no ano de 1974, por todos os outros almoços em que foi legítima a
minha presença numa consagração que lhes pertencia e da qual eu era fruto,
único fruto.
Mas estava eu falando do meu 25 de Abril, mais precisamente
o de 1974. Acordei mais cedo do que seria normal para um dia de
semana. Acordei porque senti as vozes da rádio na sala, dita de "estar". O “rádio”,
peça de mobiliário digna de adoração, tinha no seu interior o primeiro
gira-discos que eu vi na vida. O estar sentado a ouvir rádio era um luxo de
classe média que o ordenado do meu pai permitia. Nessa madrugada a posição
curvada da minha mãe, olhar fixo nos números do mostrador das frequências, robe
vestido por cima da camisa de dormir, tirava-lhe essa magia e emprestava-lhe
uma gravidade que me assustou. Cheguei-me devagar ao pé dela e sentei-me a seu
lado, ela aconchegou-me sem tirar os olhos do mostrador luminoso. Passou algum
tempo até que me dignasse perguntar alguma coisa. Não me lembro exatamente da
pergunta mas recordo perfeitamente a resposta, “Um golpe de estado”, ainda não
era da revolução que se falava nessas primeiras horas. A minha mãe tinha sido
avisada pelo meu pai. Trabalhava por turnos na refinaria de Cabo Ruivo, parece
que estavam militares na portaria e não o deixavam sair às oito como seria
normal. Perguntei-lhe o que era um “golpe de estado”. Penso que tentou
explicar-me mas eu não devo ter entendido.
Entendi depois porque tinham, no ano de 1973, ido uns
senhores de fato e gravata buscar o meu pai para uma conversa matinal em
Caxias. Fiquei a saber que aquele seu colega, vinte anos mais novo e que lhe ia
ensinar matemática, tinha morrido num atentado de extrema-esquerda. O meu pai,
aluno tardio do actual ISEL, andava no primeiro ano do curso que o habilitava a
chamar-se “agente técnico” e que depois de grandes controvérsias com o Técnico (o da Alameda) se apelidou de “engenheiro técnico”, tinha na boa vontade desse jovem a moleta
que o ajudava a superar as dificuldades do horário e os problemas respiratórios
do filho. Não me lembro do nome do “rapaz”. Para sempre ficou “rapaz” na minha
memória, cabelo grande e barba descuidada, mãos finas e compridas num corpo esguio
e frágil, sempre me fizera festas na cabeça à entrada de minha casa. A sua mãe reconheceu-o
pela roupa, pelos restos que a bomba não destruiu. Na sua agenda encontrava-se
o número de telefone do meu pai.
Só depois do 25 de Abril de 1974 é que percebi as palavras
escritas nas paredes dos subúrbios onde se pedia o fim da guerra colonial. As
letras vermelhas ou pretas que gatafunhadas à pressa testemunhavam um descontentamento
crescente não faziam parte dos meus ensinamentos, quanto menos eu soubesse
menos eu poderia contar, como confiar na discrição de um menino de sete anos, o que
haveria para dizer?
Havia muito para contar, que o digam os anos que se seguiram
atá à década de oitenta. Anos loucos de frenesim constante, de sonhos de
esperanças, de medos e desencantos.
Hoje o meu “vinte cinco de Abril” é essa madrugada em
que o mundo se abriu e eu descobri que não vivia sozinho no meu bairro
suburbano da reboleira. Não vai ser a notícia de um discurso infeliz, para não
lhe chamar outra coisa, que me vai estragar essa memória.
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