2014-04-02

Abril #2

Levantava-me cedo ao domingo. Não era um domingo qualquer, aquele que merecia tal deferência. Nesse domingo a família estava junta e perspetivava-se uma saída, uma saída de automóvel, o Ford Anglia lavado no sábado, ensaboado com a minha ajuda, encerado com um produto especial, reluzia nas traseiras do rés-do-chão, alinhado de frente para a janela da sala, sorria com a sua grelha cromada e olhava-me nos olhos com faróis convidativos. O domingo de folga era um dia especial, a folga de domingo só acontecia uma vez por mês, os turnos do meu pai faziam-no ausente e aproximavam-me da minha mãe, mas não impediam a sede paternal que me secava e me fazia contar os dias, religiosamente, assim como contava os dias até ás férias, não as minhas, que eram grandes, as dele que me levavam para terras do sul, para a casa da minha avó, para a praia deserta de São Torpes, a minha praia de eleição.
Levantava-me cedo no domingo e seguia rápido para o quarto dos meus pais, contendo a bexiga, ela que esperasse, tinha outras urgências, era preciso acordar a casa, levá-los para a mesa da cozinha, exigir, num choramingar fingido, o leite com chocolate, tenho tanta fome mãe, pai cortas-me uma fatia de pão, falta a manteiga, hoje vamos aonde. Eu sabia o que queria nesses domingos de 1973, os meus oito anos exigiam a volta do costume, a saída pelo bairro do bosque em direção às portas de Benfica, aquelas torres que marcavam território que diziam, a Amadora acaba aqui, agora estás em Lisboa, no dia seguinte poderia dizer na escola, fui a Lisboa, e onde fostes, fui ao café dos frangos, para os lados da igreja, os frangos que rodavam suculentos, lentos e brilhantes de gordura na máquina junto à porta, três filas de animais mortos que despertavam a minha gula, o cheiro que eu guardava na minha memória com medo que se finasse.
Nesse ano de 73 comecei a reparar nas paredes dos prédios mais escondidos que ficavam para os lados da Venda Nova. Deixavam de estar imaculados de bolores e ostentavam palavras de alerta, pediam o fim da guerra colonial, queriam que as nossas tropas regressassem, assinavam com foices e martelos, falavam de liberdade, da falta dela e eu perguntava porquê, que guerra era essa nas colónias, que eu só conhecia com o nome de províncias ultramarinas. Nunca obtive uma reposta satisfatória, sabia que o meu tio por lá andava e que também lá tinha casado, sabia que antes do Natal apareciam uns rostos na televisão de corpo camuflado e sotaques portugueses, um feliz Natal e um próspero Ano Novo, para a minha mãe, para o meu pai, para a minha namorada, para a minha mulher e para os meus filhos, para a minha família, sou o soldado António Ribeiro, o 1ºcabo Rafael Morais, o alferes João d’Almeida, os nomes repetiam-se num cenário composto, com mata por detrás, um jeep, um helicóptero, um carro blindado, os rostos à espera de vez, da sua vez.
Não sei bem aonde, a memória trai-me tantas vezes, mas nesses trajetos para Benfica, ou por lá perto, havia um terreno vedado onde se acumulavam viaturas destruídas, unimogues, jeeps, panhardes, eram estes os nomes com que o meu pai os identificava, e eu fazia-me espécie o mau estado em que eles se encontravam e queria saber porquê, porque estavam assim, destruídos e abandonados, a resposta era vaga, a guerra, com quem, com os movimentos de libertação, aonde, em africa, porquê, e a resposta tardava e eu já questionava, e as pessoas que iam a conduzir eram soldados portugueses, sim, e morreram, talvez, ficaram feridos, não sei, são aqueles homens que vemos no Natal, não sei…talvez…

Nesse Natal de 1973, quando vieram as mensagens de Natal e Ano Novo das tropas portuguesas, eu não as consegui ver…

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