2006-10-19

SE SAIR PARA A RUA NÃO BEBA!

José, Maria e Joel vivem num apartamento no centro da cidade. Hoje, ao final do dia e depois do jantar, cada um ocupa o tempo a seu belo prazer. José é casado com Maria e tem cinquenta e quatro anos. Maria tem cinquenta e é mãe de Joel que tem vinte e quatro e ainda vive com os pais. São vinte e duas horas, dez da noite, Maria está sentada no sofá e vê televisão. Tomou dois calmantes, vício que mantém desde que lhe morreu o pai, as pálpebras tombam-lhe reduzindo-lhe a visão. José ficou na cozinha lendo o jornal e bebendo um digestivo. A refeição levou-o a beber uma garrafa de vinho, porque foi ele que a preparou, porque estava mesmo muito boa e porque lhe apeteceu. Aprendeu a receita com a mulher e é das que lhe sai melhor.
Joel hoje não sai. Acabou o curso há um ano e está desempregado. Tem poucos vícios, um deles é o haxe. No quarto, de janela aberta, fuma “um” enquanto o som da aparelhagem passa Red Hot, um dos primeiros álbuns…E porque não o nome da música…”True Men Don’t Kill Coyotes”.
José fecha o jornal e decide ir até à sala. Senta-se ao pé da mulher, rotina que nunca abandonou. Na televisão uma telenovela de um qualquer canal, um homem dirige-se a um pequeno bar de sala e enche um copo com uma substância ambígua cor de tisana. A personagem masculina fala com uma mulher que decide também encher um copo. Ambos bebem da idêntica mistela. José pensa! Estão sempre a beber…Tanto que eles bebem…E dá-lhe sede…Levanta-se e vai encher um copo…Pelo menos isto eu sei o que é. Noutra sala, noutra cena, vários personagens numa festa, bebem! Raio de telenovela…
Maria está quase a dormir mas permanece atenta ao som, às vozes que saem da televisão, às vidas fingidas que lhe trazem as emoções que a sua não tem. Percebe a angustia da separação que decorre no ecrã e torce por ela, pela liberdade que ela está prestes a adquirir. Apercebe-se da tensão dramática quase sem ver.
Joel acabou de fumar e continua a ouvir música, Primus, “Frizzle Fry”. Está sentado defronte a uma consola de jogos e manobra uma personagem especialmente agressiva, mistura em partes iguais de detective e carrasco. O jogo corre-lhe bem e o animal percorre as salas de um prédio abatendo tudo o que lhe aparece à frente, sai por uma vitrina fazendo voar mil estilhaços e entra num carro fugindo a alta velocidade.
Após quatro digestivos José sente-se confortável e olha para Maria que está de olhos fechados, percebe pela respiração que ela ainda não está a dormir.
O assassino continua a matar no vídeo game.
A nova lei impede a circulação na via pública aos indivíduos que tenham consumido substâncias susceptíveis de provocar alterações do comportamento.
Ainda pensou em comprar uma pequena quinta no campo…Mas não tinha dinheiro e ainda lhe faltam muitos anos de trabalho.
A explosão é repentina, ficou-se mais tarde a saber que foi provocada por uma fuga de gás. Apenas o Joel sobreviveu. O seguro recusou-se a pagar devido a uma cláusula que impedia o consumo de substâncias capazes de provocar incapacidade de manutenção do bem segurado….Na carta de resposta vinha a lista dessas substâncias…


P.S. É tão fácil perder direitos numa democracia…Basta que os argumentos venham revestidos das melhores intenções…Com os melhores pretextos vamos cedendo…estamos numa de aborto…E do preço da electricidade…E…Um abraço…

2 comentários:

Isabel disse...

Eu ia mais longe. eu acho que é tão facil perder os direitos que nem nunca soubemos que tinhamos... os tais que veem em letras tão pequeninas que ninguem lê.
E é taõ facil disfarçar essa perca de direitos convencendo-nos que ganhamos outros que bem vistas as coisas e analisadas todas as condições não ganhamos nada, de nada.
Quando vejo aqui onde trabalho as senhoras da limpeza uma das quais com 60 anos serem chamadas para levar caixotes e outros trabalhos pesados, e sei que depois carregam no autocarro os sacos das compras em pé enquanto os cavalheiros ficam sentados lendo revistas. que direitos estamos a falar. até o numero minimo de mulheres no parlamento não é um direito vai ser um dever.

Democraticante não nos resta aceitar senão que as maiorias nos retirem cada vez mais direitos convencendo as maiorias que cada vez nos dão mais.

O melhor é sorrir para não gritar.



Isabel

Anónimo disse...

Meu caro,
Gostei muito de ler o que me endereçou para o meu blog, a propó-
sito do último texto. Este é um tipo de contacto que tem aspectos positivos na Internet.
Entretanto, sem pretensão de re-
ciprocidade, devo dizer-lhe que que
me revejo em «Se Sair para a Rua não Beba» - no tom, na imagem da pessoa, na quotidianidade inquietante embora dada pelos sinais de uma cultura hoje problemática.
Parabéns.
Rocha de Sousa
tenho um blog, Construpintar, onde publico pinturas, fotos, arte digital, numa espécie de auto reflexão.