2006-11-17

Caminheiro (A paixão)

Enquanto fazia massa trocaram olhares furtivos. Sentia-se curioso e atraído. Baixa, talvez não chegasse ao metro e sessenta, magra, cabelo castanho escuro, roçando o preto, solto e liso tocando-lhe nos ombros. As calças eram de ganga e ajustavam-lhe as formas, a T-shirt de número certo dizia qualquer coisa. As feições, meio menina, meio mulher, eram incertas. Ao longe e enquanto passava iam cambiando, alternando entre angustias e esperanças. Não teve tempo para ver mais, o trabalho tinha de ser feito e já alguém pedia tijolo. Ele e outro davam serventia a três pedreiros que erguiam paredes num primeiro andar. A meio da manhã pararam para uma cerveja e uma bucha, por volta da uma estavam a almoçar. Todos comiam na obra e quando ele disse que ia a casa não o deixaram abalar obrigando-o a sentar-se e a comer com eles. O mais velho sabia cozinhar e o pequeno estaleiro tinha fogão a gás, rudimentar mas eficaz. Nenhum deles era da terra, três das redondezas, ele e o outro servente de longe. O seu parceiro era novo e entroncado, alto e louro, eslavo por excelência, russo de passaporte tinha vindo de Estalinegrado, também lá tinha nascido. Dos outros três, dois rondavam os cinquenta e um parecia não ter idade, talvez tivesse parado por volta dos quarenta mas não era um número certo nem de confiança. Despegaram às seis, o encarregado veio buscar três com a carrinha, o russo dormia no estaleiro e ele em casa dos comerciantes.
Durante a primeira semana pouco mais fez do que dormir e trabalhar, mesmo quando chegava a casa e antes de jantar, ocupava-se a restaurar uma velha vedação de madeira que cercava o quintal. O banho depois da refeição era o acto final, a cama o descanso e a janela de céu negro e estrelado uma bênção, uma carícia. Antes de dormir deixava os olhos nas traves de madeira que escondiam aranhiços na penumbra.
Durante a segunda semana saiu duas vezes, à noite, com o russo e por convite deste. Fizeram a pé cinco quilómetros antes de encontrar um bar onde uma brasileira e três portuguesas faziam o que podiam para que um grupo de velhos agricultores mais abastados gastasse o seu dinheiro. O russo pagou e pelo que percebeu da segunda vez, havia qualquer coisa entre ele e a brasileira, mulata clara, jovem bonita de sorriso branco e aberto.
Pelo meio ficara-lhe a memória daquela mulher com o filho, memória revisitada todos os dias visto que o par atravessava regularmente aquela praceta. Um dia perdeu a vergonha e perguntou à Dona Lúcilia quem era aquela senhora que tanto passeava pelas ruas da aldeia. Menina fina, fora estudar para Lisboa mas nunca acabou nada, filha de um ricalhaço da terra, casou-se com um oportunista que lhe batia e a enganava nos negócios estourando-lhe o dinheiro que os pais lhes davam. Quem o queria ver à noite teria de procurar nas lanternas vermelhas da região. Sentiu pena daquela mulher, seria só pena? Talvez uma cumplicidade de sofrimento…Ou apenas ternura, paixão, calor… Num fim-de-semana de festa na aldeia arranjou maneira de se aproximar. A coragem não foi suficiente para meter conversa, mas os olhares que trocou com ela foram reveladores de um interesse muito maior que a simples atracção física. Ela percebeu isso e ficou perturbada mas de maneira nenhuma mostrou desagrado pelo facto, antes pelo contrário. Encontrava-se com outras mulheres, só a mais velha do grupo sentiu a inquietação na cabeça da amiga. Não seria hoje o dia indicado, talvez no café quando ela fosse à mercearia à tardinha.
Terça feira, seis e vinte, não trabalhou na cerca que só faltava pintar. Estava sentado no café e lia o jornal com uma cerveja na frente. Ela entrou como se esperasse encontrá-lo e sorriu quando o viu, “Boa tarde! Viu a dona Lúcilia?”, “Deve estar quase a vir, se quiser eu vou chamá-la…”, “Não é preciso…Eu espero…”. Esta espera que levou à conversa aberta, à apresentação formal, a um convite fora de horas…lá em casa…Paixão sem limite de carências contidas, desabafos, o retornar infindável dos corpos unidos pela ternura e pelo desejo.
(Só falta um...)

7 comentários:

pb disse...

bonito conto, bem descrito, senti-me como que no meio dessa aldeia !! desejo-te um bom fim semana e um abraço

Anónimo disse...

Julgo ser você a quem enviei há pouco mum mail por causa do endereço. Agora, nos blogues, julgo
descobri-lo - e reconheço estes admiráveis e limpos textos, um dos quais julgo ter assinalado (Caminheiro). Mas vou debruçar-me com tempo sobre este trabalho, a escrita deslumbra-me.
Rocha de Sousa

Titá disse...

Estou a adorar este conto. Cada vez mais envolvida nesta história apaixonante e que tanto me diz.

TAmbém tu é sum caminheiro.

Mano, se há pessoa que não é sinónimo de ausência, essa pessoa és tu.
Queres maior presença do que tu? Sempre foste marcante, sempre soubeste marcar tua posiçao e idiais. Tua personalidade, forma de pensar, agir e estar são tudo menos ausentes, e sempre, sempre, mesmo agora a km de distÂncia, sempre tiveste a meu lado, incondicionalmente a meu lado. Será preciso lembrar-te quem é a única pessoa que procuro quando estou triste?
Será preciso lembrar-te uma certa carta que recebeste há uns anos?
Quem procuro? Quem?
A quem telefonei quando há pouco tempo tive aqueles problemas todos?
A pessoa que mais presente está na minha vida, mesmo quando ausente pela força de Km de estrada- meu Irmão Guerreiro.
Beijo
GMT

Titá disse...

*queria escrever ideais e não idiais. sorry

Isabel disse...

Gosto muito deste homem, desta pessoa, deste caminheiro não muito diferente de todos nós que caminhamos pela vida.
Soubeste de forma genial, ao colocar-nos a caminhar com ele, mostrar que todos somos assim: caminhantes, lutando dia a dia, enfrentando os contratempos,vencendo uns desafios, perdendo outros, mas sempre avançando na caminhada que nos leva à busca das coisas simples, um sitio onde de vez em quando parar, o pão, o trabalho e claro o amor. Todos tão complicados e todos tão simples.
Caminhantes desta vida em que no caminho nos vamos cruzando com caminhantes como nós que tem o altruismo de nos oferecer um pouco do que mais belo tem lá dentro e embelezar-nos tambem.
Tu és um desses caminhantes com que gosto de me cruzar e cada vez que me cruzo contigo trago os olhar mais humilde, as mãos cheias de vontade de dar e o coração maior de amor ao proximo.

Gosto muito de aprender contigo.

Isabel

Isabel disse...

Gosto muito deste homem, desta pessoa, deste caminheiro não muito diferente de todos nós que caminhamos pela vida.
Soubeste de forma genial, ao colocar-nos a caminhar com ele, mostrar que todos somos assim: caminhantes, lutando dia a dia, enfrentando os contratempos,vencendo uns desafios, perdendo outros, mas sempre avançando na caminhada que nos leva à busca das coisas simples, um sitio onde de vez em quando parar, o pão, o trabalho e claro o amor. Todos tão complicados e todos tão simples.
Caminhantes desta vida em que no caminho nos vamos cruzando com caminhantes como nós que tem o altruismo de nos oferecer um pouco do que mais belo tem lá dentro e embelezar-nos tambem.
Tu és um desses caminhantes com que gosto de me cruzar e cada vez que me cruzo contigo trago os olhar mais humilde, as mãos cheias de vontade de dar e o coração maior de amor ao proximo.

Gosto muito de aprender contigo.

Isabel

Isabel disse...
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