2007-01-03

Urbe IV

Na rua os ruídos, sonoridades da vida que a percorre e que o acalma, atrasa o passo, reduz o batimento cardíaco. Mistura-se e deixa-se levar até à porta do café, entra, a ansiedade marcada no olhar…Este que o abandona na procura rápida de uma mesa, que o alerta para o objectivo, ali está uma! Mesmo junto à janela!...Senta-se rápido, um pouco brusco, um guinchar de cadeiras que provocou expressões de desagrado na cara dos restantes clientes…Que se lixe! Estou sentado…Agora é só esperar a poeira assentar e…Esperar…Esperar olhando para a porta, olhando à volta…Ainda bem que trouxe um livro, o livro que dissimula o errante esforço de observação…Meu bom amigo “A Curva do Rio” que ando a ler mais uns dois ou três “Bons amigos”, mas que hoje não me fazem companhia, hoje é Naipaul que me conta uma história de Africa, de imigrantes, de revoluções, sonhos, poder, prepotência e da beleza oscilante entre o amargo e doce, vontades do homem, vontades do clima, o que faz uma terra ser “terra”.
Reflexões de quem lê sem ler, de quem atropela as palavras perdendo-lhe logo o sentido, repetindo leituras que a concentração não deixa terminar, apontada que está na direcção da porta. No relógio de pulso os ponteiros marcam treze horas e quatro minutos…Mas ele tem sempre o relógio adiantado cinco minutos.
O empregado chama-o, pergunta-lhe se é o costume, “A sopa hoje está muito boa, da grossa…Vão uns croquetes ou uns rissóis? …Uma cerveja?”, “Não quero cerveja, hoje quero um sumo…De laranja!”……”Boa tarde! Posso sentar-me e fazer-lhe um pouco de companhia?”….”Claro!...Esteja à vontade!...”
O gesto desajeitado, nem se levantou nem ficou sentado num misto de apanhado fotográfico, atordoado pela voz, pela surpresa, pela imagem daquela mulher que tão gentilmente lhe pedia permissão…Lhe pedia permissão…Uma mulher mais velha que ele mas bem tratada, bonita, bem cuidada, bem vestida sem tentar iludir idades confiante do seu valor…Foi pelo menos essa a imagem que lhe ficou e assim se manteve quando ela recomeçou a falar , “Espero não o ter deixado assustado. Como vai ver o assunto interessa-me de uma forma especial pelo que considero um favor o facto de ter aceite o meu convite…Obrigado!”, acenou com a cabeça, fez que sim, mas não conseguiu responder e ela continuou, “O assunto é sobre uma pessoa de quem gostamos muito, da Carmem!”, esperou um pouco, aguardou alguma reacção e continuou. Ele ouviu tudo, acenando nas interrupções. Ouviu a primeira confissão, “Eu sou a mãe da Carmem!”, ele que sabia da Carmem viver com pais adoptivos, desconhecedora dos seus progenitores. Ouviu-lhe um nome, “Maria Teresa d’Almeida e Castro, Maria Teresa como a minha avó e de quem a família herdou a fortuna.”. Ouviu-a falar da gravidez indesejada, de ter dezoito anos, de ter tentado esconder, do parto em dificuldades, da decisão em entregar o bebé para adopção para poder voltar para casa, ela que decidiu na cama do hospital sob o efeito de sedativos e na presença do advogado da família, enquanto tentava curar uma anemia que lhe ia tirando a vida. Ela que decidiu sem saber que havia ficado estéril. Contou que casou, saiu de casa com um homem bom, que foi o primeiro de três que não aguentou. Do suícidio do pai, do internamento da mãe e finalmente da decisão de vir revelar-se à filha. Havia oito meses que a havia encontrado através de um detective privado e de algum dinheiro na instituição de adopção. O nome da instituição foi um presente da sua mãe num dia de crise. Havia oito meses que lhe conhecia a vida, que soubera da rotura com um namorado que lhe batia, que o Osvaldo a levou a casa várias vezes durante esse período, que chegou a dormir lá até….”Sempre como amigos que ela nunca quis nada comigo.”, “Eu sei!”, “Sabe!”, “Vejo-o nos seus olhos!”…Até aparecer este novo rapaz, o Ricardo…”Parece-me bom rapaz!”, “Anda a enganá-la e leva-lhe todo o dinheiro, ele também não tem culpa…Anda perdido...E ela também já lá caiu…Por isso preciso de si…Peço-lhe desculpa por ter mentido, mas se calhar não foi totalmente mentira…você gosta da Carmem…Eu também…Até agora não tive coragem para me revelar, mas perante esta situação…Não a queria perder outra vez!”.
Osvaldo não sabia o que dizer, “E que ajuda posso eu dar?”, “Mostre-se atento e pergunte-lhe se ela precisa de alguma coisa…Ela está sem dinheiro…Vai-lhe pedir de certeza um empréstimo e você vai-lhe emprestar o que eu lhe vou dar.”, “E depois?...”,
“Depois tenho de me encontrar com ela em sua casa e você vai fazer com que isso aconteça”.
O Osvaldo que quase nada disse, aceitou um cheque, aceitou esperar por um telefonema e comeu a sopa fria, os croquetes sem graça, escapou o sumo…

(Cont.)

Nota do autor: eu prometo que acabo para a próxima...

2 comentários:

Isabel disse...

Não acabes amigo.
Ou acaba e começa de imediato escrevendo mais.
Gostei muito.
Só ao ler-te tive consciência da falta que me fazia.
Estive ausente como sabes e voltar á tua escrita foi maravilhoso.
Temos uma forma de escrever tão diferente.
Mas existe algo com que me identifico muito.
Algum misto de revolta, docura, ironia, carinho, dureza, tristeza, vivência, paixão, alegria, tudo misturado que vejo dentro e entre as tuas palavras com que me identifico.

Gosto de estar aqui.

Muito.

Por isso acaba mas recomeça.

Pois faz falta.

Até breve.

Isabel

Titá disse...

Atenta e curiosa tenho seguido a história. Não gostava que acabasse, ou melhor, gostaria que não parasses de escrever, pois de facto fazes-o como poucos.
Por favor, continua.
Um beijo de saudades e aquele nosso abraço