2013-01-27

Decisão (I)


Um dia cinzento, apenas mais um. A chuva não dá tréguas, numa ilusão de batalha, investe segundo ordens meteorológicas tão instáveis como as suas previsões. Na cidade a água parece que escorre mais depressa, não ensopa, não há terra para encharcar, apenas cimento e asfalto e pedras e coisas que a fazem resvalar. Na cidade um homem à chuva. Isolado é doido, em grupo é paisagem. Gabriel foge da paisagem e torna-se louco, vai encostado, muito junto das paredes dos edifícios, das habitações da urbe que tende para o sono. Poder-se-ia dizer que Gabriel já quase não é louco, mais transparente, um quase ausente do qual resta uma ligeira sombra, a parte menos molhada da parede, aquela que por breves instantes foi protegida pelo corpo. O corpo procura um abrigo, uma cervejaria, o café da esquina, a pastelaria que serve jantares, lá mais para o fim da rua o tasco do “Açores”, a padaria do “Francês”, o quiosque do “Reformado”, a casa não, ainda fica longe, lá para o fim do bairro, na linha que separa o cimento das estrelas e do barranco que todos os anos é descascado pela chuva, todos os anos o céu fica mais perto dos pés, todos os anos as estrelas têm mais espaço, mais céu. O café da esquina que não é de esquina mas quase, não condenemos este café por não honrar o nome, atire a primeira pedra quem nunca o desonrou, lhe infligiu tremendas mutilações…Sim o café de esquina, o café da Dona Esmeralda, preciosidade de outras épocas, luto negro como a ausência, cara dócil de avó para quem merece ser neto, Gabriel merece-o, foi por isso bem recebido pela idosa senhora. Ele não era de grande palavreado, o indispensável para ser educado, tudo resto era o sorriso, a ternura de um olhar compreensivo, ser companhia e estar ausente. Entrou ausente, um ligeiro aceno, curta vénia de balanço gingado em direção à cadeira, a curva perfeita, o jeito de ancas no corpo magro que se desvia do bico da mesa, nalgas assentes e o ajeitar dos braços por cima do tampo, tudo junto e o pedido balbuciado, que a chuva roubou-me a voz.

Sim, faz o pedido! O que te apetece num entardecer chuvoso e frio? Beberias tu do meu pedido? Sangue que fosse meu seria aquecido. Deixei-te ai esquecido…devo-te uma dose etílica, algo que distraia os teus olhos que eu deixei presos à vitrina.

Dona Esmeralda, um café…e um bagaço. A negra senhora olhou-o de soslaio. Mesmo de esguelha o olhar foi suficiente. Porquê pedir um bagaço? Uma dose de álcool pelo despedimento, outra pelo divórcio, e que tal acrescentar a falência, o abandono, a ausência, outra qualquer causa que justifique o abraço, o copo que prolonga a mão, a culpa é da mão que leva o copo à boca, a culpa é da boca que…Devias comer qualquer coisa, queres que te faça uma sandes, fica por conta? Dona Esmeralda…um café…e um bagaço…Estás tão magro…Pois estou! Continua a chover, a gordura da vitrina deixa as gotas separarem-se, juntarem-se, deixarem-se escorrer por onde o vidro ajuda, regueiros de sebo, os dedos da vida que deixam a sua justificação, serviço involuntário de identificação. Dona Esmeralda…o bagaço… pode ser dos grandes. Será a causa tão grande como o cálice? Não terá resposta a pergunta, visto que esta ficou-se por um pensamento. Será pergunta quando o cálice forem muitos, tantos que a mesa se queixa do espaço que lhe ocupam. Será pergunta quando as lagrimas já não forem causa, apenas um escoar de líquidos que o corpo rejeita por incontinência. Dona esmeralda…mais um bagaço…A velha senhora afasta-se contrariada, seria mais fácil não gostar do rapaz, seria mais fácil não o compreender, seria melhor ele não se parecer com o seu filho, o filho que perdeu em africa em 74, um dos últimos a morrer no continente, em nome do império, em nome de tudo o que ela nunca compreendeu, Já nem estava com o pai, ficou-lhe a dor e a imagem do jovem filho feito cristo. Desde esse dia todos os jovens que sofrem são cristos, a juventude em sofrimento é cristo. Dona Esmeralda é Maria de coração, Gabriel é órfão de Madalenas. A chuva continua a cair mas já não molha da mesma maneira, já não quer encharcar. Gabriel sente-se molhado, fez questão de pagar tudo, também a sandes, fez questão com o olhar implorativo de quem não está habituado a pedir, no entanto o sorriso não o abandona nem a voz suave e quente com que se despede da Dona Esmeralda, até amanhã…mãe…desculpe Dona Esmeralda…não faz mal…meu filho…Daniel…

Vou levar-te para casa. Sabes que pensei matar-te? Sim imaginei um assalto ao café, tu armavas-te em herói e acabavas com uns gramas de cumbo no corpo. Eu ficava satisfeito com o banho de sangue, trágico final quando não se quer continuar. Tu? Tu tinhas uma morte digna, morto antes dos trinta, cadáver bonito, ainda sem doenças nem rugas, nem marcas de velhice que o teu dinheiro seria incapaz de disfarçar. Não, não vais morrer…hoje…

Gabriel vai tentar jantar, na casa dos pais, dormir, no quarto de infância, viver do que lhe resta, talvez ler um livro, dar uma volta na net, o bafo alcoólico disfarçado por partilhas, os comentários :) , o céu e o inferno á distância de um clique. A decisão, por enquanto, não é explícita. Sê-lo-á a seu tempo, quando a chuva deixar de lavar as nódoas, a infeção que nos corrói. A noite será benévola, a madrugada fria irá relembrar-lhe que nada mudou e que a decisão continua a ser dele.

10 comentários:

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