2006-07-19

Uma reflexão sobre a escrita…



Resposta às angústias, necessidade de marcadores, referências, lugares de onde se pode olhar o passado e refazer o futuro. É isso a escrita? Invenção de vida, acto reflexo do que choca connosco, consequência passada para o papel? Da prosa à poesia, passando pelo simples desabafo, projecto, comentário, lamento, de tudo se escreve. É global e abrangente e dependemos dela todos os dias, a identidade cultural depende dela. Actualmente é digital, mas não deixa de ser o que é. Como acto artístico, não depende da raiz tecnológica. A escrita depende da vida, desde sempre a quisemos. Foi um dos maiores feitos da humanidade. Foi repetida vezes sem conta, teve as formas mais diversas, cada povo inventou-a à sua maneira, vítimas de uma necessidade comum, poderemos chamar-lhe instinto? Depositámos o passado na sua verdade, na sua interpretação por entendidos. Construímos a nossa vida por herança genética e escrita! Quer a gente queira, quer não!
Eu comprei o jornal e li, eu li o jornal que não comprei, eu ouvi de quem leu o jornal, eu ouvi de quem ouviu, mais cedo ou mais tarde a informação chega. Eu li, eu sei quem leu, alguns dirão, eu escrevi e também li. Partindo do pressuposto que ninguém está completamente isolado, poderemos separa-nos em três grupos, os que escrevem, os que lêem e os que ouvem. Óbvio será que muitas pessoas pertençam simultaneamente aos três grupos, mas o que também será óbvio é o facto de o último grupo estar isolado. Quem a ele pertence, embora com muito para contar, dependerá sempre dos outros para o registo dessas histórias. Tenho muito carinho por quem me conta essas experiências, gostaria de ser seu portador, guardar o seu testemunho, criar a ilusão da eternidade para esses homens e mulheres que não a sabem, não a entendem…São vencedores de gerações difíceis, o estudo era um bem supérfluo, um acessório, alguém o faria por eles. Alguns sabem que assinaram papéis, que aprenderam a fazer a assinatura, outros ainda utilizam o dedo. Não mendigam oportunidades para contar, antes esperam pacientes pelo ouvinte certo, aquele que lhes inspire a memória…E depois falam…São histórias e mais histórias, sempre de tempos difíceis que quem não aprendeu a ler nem a escrever tinha de trabalhar no duro. Hoje sobrevivem de reformas insignificantes sem perceberem bem o que os atingiu. Ouvi-los e guardar esse passado decerto que traz outra versão da nossa realidade, nossa de todos, uma versão que sistematicamente gostamos de meter debaixo do tapete…”É tão depressivo!”.
Não! Não acordei iluminado pelo Espírito Santo! Também não foram problemas de consciência, apenas revolta de não poder levar o mundo às costas…Faz-se sempre o que se pode, não é?!?!...
Fica no entanto a observação, o alerta, ouçamos essas pessoas antes que desapareçam…É tão simples…Basta ouvir…Que cada um de nós registe a sua memória, nem que seja por breves momentos de lembrança, dar-lhe-emos certamente algo mais que a nossa atenção. Quanto a nós ficaremos decerto mais valiosos, mais humanos.
Não levem o assunto demasiado a sério… Foi só uma reflexão que quis partilhar…

5 comentários:

Miguel Baganha disse...

Mais uma reflexão sábia, Guerreiro...

Efectivamente, considero o acto de lêr ou escrever ( bem ou mal ) um luxo...
Um luxo imprescindível e pouco valorizado por muitos.
Já tentei imaginar o que sente um analfabeto diante de um texto, e por muito que tente não consigo.Julgo que deverá ser uma sensação de um vazio indescritível...

Obrigado por partilhares a tua reflexão iluminada conosco...

Gozas de uma visão extremamente realista, e consegues transcrevê-la em palavras simples e envolventes.
Agrada-me a forma como escreves, pois consegues transportar-me para a acção sem que eu dê por isso.

Aguardo a próxima...reflexão.

Um abraço

pb disse...

" não levem o assunto demasiado a serio ..", não concordo, acho que devemos, sim, levar a serio, enriquece o nosso saber e sobretudo mais importante, damos atenção a quem, ao longo da vida a teve tão pouca. Um abraço

P. Guerreiro disse...

Eu só não queria deprimir ninguém...Não era esse o objectivo!

P. Guerreiro disse...

Dai pedir para não levarem demasiado a sério...

Talk Talk disse...

E cada vez há mais gente que não dá valor á capacidade que tem em saber ler ou escrever...

Um abraço.