2024-10-03

A Eternidade

Acredito em Deus, mas não acredito na religião.
A religião promete-me a eternidade, mas para ser eterno é necessária uma existência antes do nascimento. Uma eternidade sem passado é uma falsa eternidade, uma eternidade parcial, o que faria do mundo um conjunto infinito de eternidades imperfeitas. Assim sendo, e para que eu possa ser eterno, o meu nascimento não é mais que uma reencarnação. Mas para que a reencarnação seja uma realidade necessitamos de um número constante de entidades reencarnáveis. No início esse número foi criado, é lá que encontramos a primeira reencarnação, possivelmente uma reencarnação quântica, onde, ainda antes de sermos uma coisa feita de coisas, éramos apenas partículas em constante mutação. Esta é a premissa para a unidade divina. Deus está em nós porque nós não existimos sem ele e ele não existe sem nós e nós não somos mais que reproduções reencarnadas dessa unidade. Haverá um fim para esta renovação, um estágio superior onde ela se resolva numa sabedoria Suprema, uma entidade acima de todas as outras? Em teoria não. Qualquer estágio que dependesse deste processo, estaria sempre preso à unidade primordial. Se, porventura, acreditarmos que algo existia antes desse início teremos de considerar, também, a existência de uma reencarnação anterior, proveniente, possivelmente, de um outro início. Onde ficamos então? Presos à eternidade parcial que depende do nosso comportamento desde que nascemos até que assumimos a forma espiritual ou, pelo contrário, assumimo-nos eternamente reencarnados, para sempre passado, presente, e futuro, navegando numa constante mudança de forma numa permuta finita de entidades espirituais. Para cada partícula, seja ela a mais ínfima, haverá sempre espaço para uma reencarnação. 
O que é então a eternidade?
Para quem acredita na vida após a morte não é mais que uma tomada de consciência pelo seu nascimento. Para quem acredita na reencarnação, é a vida em constante renovação numa existência paralela com o universo. Haja quem acredite no Nirvana, uma passagem para um nível superior, mas isso não acrescenta nada ao conceito de eternidade. É apenas um síndroma humano associado à sua necessidade de chegar mais longe que os outros. De que serviria esse Nirvana sem a existência de outros semelhantes para os quais esse estágio ainda era desconhecido. Qualquer que seja a eternidade ela não suporta a solidão na qual ela deixa de ter significado.
No começo deste texto referi a minha crença em Deus, mas devo aqui esclarecer esse crer. Para mim, rezar não é acreditar na sua existência, é apenas uma esperança, quem sabe vã, na sua existência. Na verdade, o niilismo que me ataca faz-me sofrer por me deixar colocar todas as questões, por me deixar destruir todos os dogmas pondo-os constantemente em causa, mesmo que alguns já procure tenham sido dissecados até ao suicídio por filósofos de outros séculos, por me lembrar que tudo me é permitido. Procure eu as respostas sem me satisfazer com nenhuma, e perceberei que essa é a essência e a beleza da vida. Quem sabe se a eternidade não se encontra nessa insatisfação.


2024-07-08

Argumento de “Uma, muito pequena, curta-metragem”

I

Esta noite fui cedo para a cama.
Poderá esta frase resumir o espírito de uma Nação?
Não!
A Nação não foi cedo para a cama!
A Nação acredita no milagre fatalista!
A nação desconhece o futuro que lhe preparam!
A passagem de ano revela-se como mais uma noite de copos.
A passagem de ano revela-se comemorativa,
Como se algo houvesse para comemorar…
Para quem tem fome, a fome perdurará!
Para quem não a tiver, a ausência será constante!
Depois da fome o próximo passo será a guerra!



II

Não sonho esperanças vãs,
Não anseio promessas falsas.
Os começos já os conheço,
Episódios que ciclicamente me repetem.
As luzes da minha rua estão gastas,
Pequenas estrelas humanas,
De duração programada.
É esse o caminho que me leva ao quarto.
As sombras do que lá existe,
Dizem pouco ou pouco têm para dizer.
Afinal de contas,
As sombras não falam,
Balbuciassem elas as palavras necessárias,
E contariam histórias.
Porque é de histórias que eu falo,
Porque de histórias são feitos os meus sonhos.



III

Sou normal,
A corrente eléctrica chega a minha casa por fios,
A minha secretária é de madeira,
De madeira é a lenha que queimo na minha lareira.
E eu que sou normal,
Não me sinto assim.
Olho para o fogo,
E lembro-me do fogo,
Das palavras poéticas,
E do terror da torrefacção.
Dos finais que todos os dias o são,
Dos começos que os acompanham.
Sou normal na minha maneira de o ser,
Sinto que sou o que sou.
Senta-te e escreve a verdade que te ensinam…
…Segue leve….



IV

Escrevo,
E ao escrever ouço-me.
Penso em mim como uma voz,
Um reflexo do que vi,
Do que vejo.
Sou um pedaço orgânico,
Pedaço entre pedaços,
Reflexo orgânico de desejos,
Que não sendo meus também o são,
Reflexo de frustrações,
Que não sendo minhas,
São as minhas confissões.
Reconheço-me enquanto escrevo,
E não preciso sofrer,
Para ver que o que escrevo,
É o colectivo a morrer.



V

Finge-te,
Homem ou coisa,
Algum lugar ou nenhures,
Finge-te a seco.
Não te escondas do que finges.
Finge-te mas não te enganes.
Não te escondas em substâncias.
Abre a janela do quarto,
Não tenhas medo do frio,
Da solidão ou vazio.
Homem que é Homem é isso,
Essa coisa complicada,
Que chora por não ser nada,
Quando é tudo o que precisa.
Finge-te parvo ou incerto,
Mas não finjas que não sentes,
Nem desprezes quem está perto.

2024-03-21

Porque hoje é dia de poesia...

 

Tropeço em imagens de morte



Estou sentado na minha sala de estar.

A televisão está ligada em sintonia com a desgraça.

Uma mulher desapareceu sem deixar rasto.

Um homem morreu após um grave acidente.

Tudo num formato decente,

Largado de forma inocente

Num tom de branda ameaça.

Alguns milhares de crianças ensombram o Natal

Morrendo debaixo de fogo inimigo.

Qual terá sido o pecado para merecer tal castigo?

O homem de fato aprumado

Passa o assunto à mulher que,

Com aspeto asséptico,

Continua com as mortes do dia.

Será o mesmo se eu ligar a telefonia?

Procuro outro canal,

Uma outra informação,

Uma calamidade meteorológica

Que me faça sentir culpado

Da forma negligente como consumo.

Dedilho o jornal digital

Num artefacto chinês.

A maçã que traz no rosto

Não denuncia quem o fez

Mas os mortos são idênticos

E os rostos que os nomeiam

contam sempre a mesma história.

São crónicas de cruzes e estrelas,

Quartos de lua sumidos.

São deveres assumidos

Pelos pais de nobres nações.

É o direto de matar porque sim

É o direito de morrer porque não.

Afinal quem tem razão?

É sempre quem tem a arma na mão.

Tropeço nas trincheiras da guerra

No século de todas as esperanças.

Marte lá longe à nossa espera

E todo esse conhecimento que recebemos.

Dados incalculáveis

Computáveis,

E, no entanto,

Tão vulneráveis.

Estou sentado no meu sofá,

 junto à árvore de Natal

E tropeço nos mortos que enchem o meu ecrã.

Não sei quantas polegadas de horrores

Que, de tão distantes,

Reconfortam do frio.

A sala fica mais quente,

Tudo pior do que dantes,

Mas a alma mais dormente

E o meu corpo mais ausente.

Agora um tiroteio num restaurante,

Uma facada junto ao rio,

Um atropelamento casual

De um velho navegante.

Uma criança abusada,

Um bebé desmembrado

Por um pai atarefado

Que só a queria calada.

Tudo muito composto,

Tudo muito bem arrumado,

Durante hora de jantar.

O famoso horário nobre.

A morte servida entre quinze minutos de vendas.

Vem cá que eu não te aleijo meu bombom de chocolate.

Com uma corda ao pescoço davas um enfeite de Natal,

Amarrado pela cintura, um arranjo floral.

Tudo tão simples.

Os mortos lá longe e eu quentinho na cama.

Com um novo pijama e

Uma lareira ecológica.

Como desafiar esta lógica?

Tudo tão comedido

Tudo sempre no mesmo sentido.

Seis décadas que só me fazem tropeçar

Em imagens de morte.

E o homem fardado a dizer

Que não irá parar

Que enquanto alguém respirar

Enquanto houver alguém para morrer

A bomba irá explodir,

A granada irá detonar,

Haverá metralha no ar

E razões para sorrir.

E o Natal que virá

Será apenas mais um

Para fazer acreditar

Que na mesa comum

Uns comem até fartar

E outros fazem jejum.

2023-12-17

Continuo à espera de uma cadeira eléctrica

Que caminho, aquele que eu percorri desde a última vez que me atrevi a teclar algumas palavras para aqui deixar uma mensagem. Acontece tudo tão depressa, tudo desaparece tão depressa. 

Fui convidado para um casamento no dia quatro deste mês. Foi um convite irrecusável. Ainda bem que assim foi, ainda bem que não pude recusar, ainda bem. 

Pego a partir daqui. Estamos em dezembro. Para ser mais exato estamos a dia dezassete de dezembro de dois mil e vinte e três. São vinte e uma horas e quarenta e cinco minutos. O relógio irá avançar enquanto eu luto com os meus dedos para digitar estas palavras. Novembro passou, veio o frio, e o meu corpo ressentiu-se. 

A D. apanhou Covid e eu fui atrás. Durante alguns dias não fui capaz de dormir. Primeiro porque me custava respirar e tossia muito, depois porque ganhei uma aversão paranóica à cama. Assim que me deitava entrava em pânico e tentava levantar-me rapidamente, algo que eu não sou capaz de fazer sem algum esforço e alguns minutos. Lutava com os lençóis, com os pés que escorregavam, com as pernas que não se mexiam, com anca que não se dobrava nem segurava, com a minha cabeça que, em estado de alarme compulsivo, me enviava mensagens de desespero; "Levanta-te! Despe-te e vai para a janela apanhar ar! Vai à casa de banho urinar, vai rápido que a bexiga já abriu as comportas e as cuecas já estão molhadas!". 

Deixei de ir para o quarto da cama. Sentava-me no cadeirão da sala e adormecia, com uma manta por cima das pernas, por períodos não superiores a uma hora. Agora que penso bem no assunto nem sei bem se adormeci. A partir de uma certa altura tudo se torna confuso e a realidade que eu apreendo pode não ser mais que uma vontade moldada pelo desespero, uma recriação em modo de sobrevivência. 

Durante cerca de quinze dias a noite tornou-se algo insuportável. Tantas vezes que eu me lembrei do hospital e da convalescença após aquela operação de urgência. Sim, também não dormia de noite, só me rendia com luz do sol, talvez assim a morte não me levasse. Mas na altura eu combatia uma infeção generalizada e tinha esperança que, terminado o combate, tudo voltaria à normalidade possível. Certo é que realmente tudo voltou, mais ou menos, ao que era, até a minha arrogância e impaciência.

Aproxima-se o Natal e a cama já não tem picos. Fiz a experiência no fim de semana passado, quando a minha filha veio a casa. Juro que tremia quando me rendi à tentativa. Consegui deitar-me mas não dormi. Com uns auscultadores nos ouvidos e o telemóvel em modo Spotify, fechava os olhos e mergulhava numa longa audição de êxitos com quarenta anos de idade (um dia explicarei porquê este retorno ao passado).

Sim, também matámos javalis. O carro ficou a andar e do acontecimento resta-me a memória do porque bravo deitado no chão a espernear na noite escura. Podia ter sido pior, passaram-nos uns sete à frente e só acertámos em dois. Isto tornou-se banal na nossa região e, aparentemente, não se quer encontrar uma solução. Fica o estrago e a despesa, a certeza de haverá mais dinheiro a sair da conta para que o   Natal fique mais em conta.

Fui a Santa Maria. Que tragédia esse dia, quase quarenta minutos para estacionar a quilómetro e meio do edifício pretendido. Passeios sem rampa, seguranças mal educados e agressivos, e as respostas de sempre, a puta da doença continua paulatinamente a avançar. Os testes cognitivos não indiciam a presença de outras complicações, nomeadamente Alzheimer. Sim, isto pode sempre ser pior.

Em abono da verdade fui ajudado por um dos seguranças do hospital que se condoeu com a visão de um deficiente esquelético agarrado a um poste de transito enquanto a D. tentava descer o passeio para trazer a cadeira de rodas para a estrada, único local onde a circulação era minimamente praticável. Não me perguntem pelos lugares para deficientes que eu recuso-me a responder. Mais tarde, ainda nesse dia, a D. haveria de perder as estribeiras no Fórum Almada por causa de um elevador.

Tanta coisa a acontecer. Aproxima-se o Natal e a minha preocupação é o aniversário da D.. Tanto que ela merecia um aniversário em condições. Isso e as condições de mobilidade onde decorrerão todos estes eventos. Queria tanto não ser um empecilho.

Domingo à noite. Segunda ainda continua a ser um dia de trabalho. Só eu sei porque este facto é tão importante para mim. Gostava de ir só a a D. mas ELA não me larga.

P.S. Continuo à espera de uma cadeira eléctrica. Pode ser que chegue a tempo...



2023-10-31

Verborreia ou incontinência oral?

 De bata branca. De bata imaculadamente branca apresentei-me na Escola Básica Nº 1 da Amadora. De que me serve relembrar essa criança de sete anos, asmática e frágil, de pequeno porte, como se diz dos poneys. A fotografia existe e foi digitalizada hà alguns anos por um gajo que se chama Paulo Saboga. Já não o vejo hà algum tempo. Descobri a fotografia por acaso. Bem, nem por isso. Procurava outra pessoa, outro local, uma recordação que não era minha mas que que eu conhecia como se fosse. Cabo Ruivo a preto e branco, um homem de fato e gravata parecido comigo, bancadas com intrumentos analíticos fora de moda, telefones pretos que faziam Trrriimmm quando queriam o conforto de uma orelha, um beijo no bocal, o bafo quente e humido que se infiltrava pelo emissor radiofónico, e folhas, muitas folhas, e papel químico, e canetas, esferas gráficas que rolavam, modernas, pelos boletins impressos, gritando BIIIQUEEE (BIC). Hoje gritam-se outras coisas nos teclados. Fala baixo Paulo, vê lá se alguém te ouve nesse teu matraquear furtivo; o sujeito pára de escrever e olha desconfiado à sua volta. Não, não está ninguém a ver...de bata branca, de bata imaculadamente branca apresentei-me no gabinete do Engenheiro. Penso que foi o Guerreiro que lá foi. Primeiro bateu à porta, uma porta sempre fechada, uma porta que guardava a segunda sala no primeiro andar, do lado esquerdo...seria a segunda ou a terceira? Que interessa isso agora? Quem poderá confirmar essa tua realidade, repetida até à exaustão durante anos. Lembras-te dos sapatos? Talvez botas, ou ténis...e das calças? Calças de ganga no verão, bombazine no inverno, talvez nem fosse eu. Bem, o cabelo comprido, a barba grande e mal aparada, tinha tudo para ser eu, mas podia não ser, já foi hà tanto tempo, dezoito? Já não me lembro quantas farpas estavam cravadas no bolo...sim, pareciam velas e estavam acesas, se calhar eram só duas, por uma questão de economia. Com esta conversa a bata branca já não está à porta. Deve ter batido suavemente, devem-lhe ter dado ordem para entrar, daquelas ordens de quem manda uma coisa que não quer, deve ter entrado e pedido autorização para se sentar e deve ter-se sentado. Agora um grande plano nas mãos que procuram refugio nos bolsos da bata mas...algo se passa nesses bolsos, pois elas recuam para repousar uma em cada perna. 

Não Doutor, esta conversa das mãos agarrou-se de tal maneira à minha pele que quase lhe sinto o cheiro. Ah, o Doutor não sabia que as conversas têm cheiro? Não Dr., não estou a ser irónico. Tenho cheiros de conversas que nunca mais esqueci, talvez seja o meu lado animal, ou outra coisa qualquer. Nos dias que estava com alergia, ou constipado, os cheiros deixavam de ter significado e as conversas perdiam a importancia. Quer voltar às batas brancas? Quais Dr.? Tenho tantas batas brancas na minha vida.

Peço desculpa Dr. mas tive de ir jantar. Iamos aonde? Nas batas brancas? Nem sempre foram batas e nem sempre foram brancas. O branco aleija sabe, no papel obriga-me a escrever, não descanso enquanto não o cubro de simbolos, porventura palavras, frases que brotam sem que as possa estancar. Muitas vezes, quando as revisito, descobro nelas sentidos que não fazem parte da sua genese. O meu mal é querer dar-lhe sentido, importância. Vou falando, escrevendo, sem que consiga parar. Talvez seja da chuva, do frio, das noticias que teimam em querer dividir, és a favor ou és contra? Não sei, deixa-me pensar. Vá lá, depressa, tens dúvidas? Não me digas que não entendes, que não sabes como as coisas são. Vá lá, A ou B, preto ou branco, sim ou não...não sei... deixa-me dormir...

Dr., acho que a conversa já vai longa e o jantar deixou-me mole. Sim, é melhor deixar para outra vez. Da próxima, prometo contar-lhe histórias das esplanadas nos cafés da Amadora. Já as revi tantas vezes que, para não fartar, as vesti de diversas maneiras. Possivelmente aconteceram com todas essas roupas, adereços inventados  e figurinos avulso. Porque é que as continuo a contar? Ao fim de todos estes anos continuo a ser um miúdo da reboleira. 

Hoje a bata branca fica nas costas da cadeira. Está lá para me lembrar do que fui. às vezes imagino que sou eu que estou lá sentado. Por vezes tento descobrir-me, preso que estou entre os dois ecrãs ligados ao processador. 

Até amanhã Dr., já são quase dez horas e acabei por não dizer nada do que queria falar. Sim Dr. , voçê sabe ao que é que me estou a referir. Ok Dr., então até amanhã.

2023-10-04

Inter vs Benfica

 Há quanto tempo que não o via Doutor. A coisa vai andando. Sabe Doutor, ELA é uma companheira fiel, mas cobra-me um preço muito elevado. O amor é assim, possessivo, algumas vezes doentio, ciumento quando a entrega é incondicional, intenso em todos os momentos e assim se mantém até se tornar banal e desinteressado, mas por essa altura já não estarei cá para o sentir. Não Doutor, não estou a ser pessimista, muito pelo contrário. Na minha opinião até estou muito optimista. Repare Doutor, em vez de banal e desinteressado o amor poderia tornar-se odioso, ai sim é que a coisa podia dar para o torto. O ódio gerado pelo amor é um ódio sem piedade, rancoroso e vingativo, metódico na sua capacidade de provocar sofrimento. Se ELA assim já é difícil de aturar, imagine-a tomada por um sentimento assim. Em vez do desinteresse e do abandono que me permitiria um esquecimento gradual até ao fim da nossa relação eu teria 24 horas de sofrimento continuo, a respiração forçada, fraldas molhadas, quedas sucessivas, mazelas registando o conflito constante, a comida por um tubo, os orgãos desistindo de mim em gritos de agonia, Deus me livre de tal sorte Doutor!

Doutor, ontem vi o jogo do Benfica. Jogou com quem? Foi a Milão levar porrada do Inter. Sim Doutor, sou do Benfica. A bem dizer não sou de ninguém, porque isto de "ser", tem muito que se lhe diga. Talvez da minha mãe e do meu pai mas, agora que eles já não estão cá, da D... e da M..., fardo herdado, fado cantado, letra barrenta num gemido de guitarra sem cordas, a voz de um destino, cortado pela naifa que repousa no bolso de trás das calças de Deus. Não, não era sobre Deus que eu queria falar. Era sobre tristeza, neste caso a tristeza que eu senti no final do jogo. Sim Doutor, também fiquei triste por o Benfica ter perdido, mas não era dessa tristeza que eu queria falar. A tristeza que eu senti foi por ainda cair na mesma esparrela de sempre. Eu que não alimento o negócio do futebol subscrevendo canais de pontapés na bola, comprando jornais desportivos de arremedos coloridos "à la carte", indo a estádios para partilhar vocabulário vernáculo gritado em uníssono num orgasmo colectivo, adquirindo  o merchandise apropriado como prova de um amor partilhado que justifica a minha existência, eu que não sou sócio de nada (o clube desportivo da empresa onde trabalho não conta), não participo em esperas apoteóticas à porta de hotéis, salivando por uma foto ou um autografo, eu que não faço nada disto, ontem tive uma recaída e ressaquei. De boca seca e com hálito venoso, jardei merdas e mágoas, mágoas de merda que me revoltaram o estômago e me deram a volta aos intestinos. A Bola é como o álcool, se não sabes beber, não vejas. Na prática vi o Benfica ser humilhado e de nada me serviu justificar aquela exibição com um penálti por marcar ou umas cotoveladas no João. Podia ter-me sentado a ler um livro de Nabokov, tentando-me culto, ou ouvir um CD de Coltrane só porque sim e para parecer bem. Mas não, acedi à voragem contagiosa de um hino, do qual não gosto particularmente, e entreguei-me de garfo numa mão e copo de vinho na outra, numa degustação medíocre que me deixou com azia. Se aprendi alguma coisa? Claro que sim! Aprendi que a companhia do meu irmão M... e da minha D.... era muito mais valiosa que aqueles 22 mocinhos correndo pelo prado da glória em arremedos de pop stars. 

Continuo com as seções de fisioterapia. Vou às segundas, quartas e sextas, sempre das 18H00 às 20H00. Se me fazem bem? Não tenho a menor dúvida. Gosto da disciplina que é necessária para fazer os exercícios, gosto de chegar ao fim das seções com a sensação de dever cumprido, gosto do apoio que a D... me dá, gosto da minha fisioterapeuta. Se estou melhor? Essa é a pergunta a que não devo responder.

As duas horas que passo na clínica são redentoras. Atravesso a rampa como se fosse o rio Jordão. Verto águas no WC reservado às pessoas com mobilidade reduzida. A sanita adaptada é a minha pia baptismal, o meu confessionário. 

A minha D... tem sido incansável. Não sei se seria capaz de aguentar com ELA sem ela. 


2023-09-16

Por cada tremor um beijo na testa

 Já fui a muitos casamentos e a aniversários mas, este último ano, não consigo olhar para eles sem pensar que irão ser os últimos. Ontem o meu irmão M... fez anos e convidou-me para um jantar em sua casa. Eu e a D... saímos tarde do trabalho e estávamos ambos muito cansados. Recusar o convite do meu irmão estava fora de questão mas, para não variar, estava receoso de como iria aguentar tantas horas a uma mesa, visto que, os jantares do meu mano são sempre bem regados, com muita conversa e sem equipamentos electrónicos ligados. Também para não variar, tudo correu bem. Acabei por ficar até à meia-noite e passei umas horas muitíssimo agradáveis junto de pessoas amigas e de conversa fácil. Como cereja no topo do bolo tive a presença da minha filha que chegou, vinda de Lisboa, por volta das 22H.

Hoje de manhã disseram-me que a terra tremeu ontem à noite, 3 e meio na escala de Richter segundo o Telejornal, ou terá sido a D...? Não dei por nada e dormi que nem um anjo. A terra liberta-se de tenções com pequenos aconchegos no seu corpo. Enquanto assim for a coisa não está mal. Já eu só consigo acumular tensões. Em mim os abalos são sempre superiores a 7 na escala acima referida. Olho para o meu corpo e os estragos são evidentes, não há operações de resgate que consigam salvar alguma coisa. Ontem bem que o Moisés farejava nos meus escombros algum sinal de sobrevivência. Bendito animal de olhos tão meigos, negros como o pelo, negros como a noite onde adormeço e sonho. Não sei se sonhei contigo mas, se o fiz, de certeza que te abracei.

"Ó Doutores da medicina/Sacerdotes de Hospital/Guardem de mim memória/Por este amor tão fatal", assim começa um poema que fui encontrar numa prancheta, no meio da papelada técnica, lá no trabalho. Para dizer a verdade, não é assim que ele começa, mas é este o refrão. Está desatualizado, e é tudo o que tenho a dizer sobre o assunto. Bem, devo acrescentar que estou pensando utilizá-lo numa canção, no fim de contas escrevi-o com esse propósito. Haja tempo, paciência, mãos e necessária quantidade de prazer para o fazer.

Estou a ouvir Albert Wynn & His Gut Bucket Five. Jazz & Ragtime, Chicago entre duas guerras mundiais. Qual a razão para tal referência. Talvez porque, passados cem anos, também vivemos os nossos anos vinte, com os nossos devaneios, a nossa procura de divertimentos que nos façam esquecer  o futuro incerto, o nosso consumo de substâncias que nos ajudem a suportar a ausência de respostas. Limitemo-nos animais, sonhadores de impossíveis e, já que não nascemos com o dom da loucura esquizofrénica, que abre o mundo à genialidade, contentem-nos com a química que a finge.

Se tenho mais a dizer? Tenho sempre tanto para dizer. Poderá ser irrelevante, sim, claro que sim, mas, dentro da minha irrelevância, será sempre o que de mais relevante tenho para dizer. Que cena mais egocêntrica para exteriorizar mas, neste momento, eu sou como um barco em alto mar, sempre à procura do equilíbrio certo para não naufragar. Às vezes permito-me distrações mas, não podem ser prolongadas. A brincar, pode dizer-se que vivo por turnos; haverá sempre, dentro de mim, alguém em vigília. Porque não uso eu substâncias geradoras de genialidade e desassossego, de bem estar e adormecimento, de sensual felicidade e corporal necessidade? Porque tenho medo de não me reconhecer.

Domingo vai longo, cá por estes lados, e a tarde onde navego, tem rochedos encalhados.

Domingo vai cheio, cá por estas bandas, e o barco onde navego, não tem janelas nem varandas.

Que dizes tu, barcos sem janela e sem varandas? Bem, eu da arte de navegar só sei mesmo é do balanço do mar e da brisa que sopra no ecrã do portátil. Retirem-se as janelas, deixem-se as varandas. Coloque-se um vaso com cravos vermelhos...e não me façam mais perguntas.


2023-09-09

Blá, Blá, Blá...

 Doutor , há quanto tempo. O que tenho feito? Rotinas doutor, rotinas que justificam a minha existência e me ajudam a passar o tempo. Agora agarro-me a detalhes e retiro-lhes significados. Ainda ontem, à hora de almoço, tive uma discussão sobre futebol. Não foi bem sobre futebol, porque de futebol hoje ninguém fala. Falámos do tempo extra dado pelos árbitros, das faltas simuladas, do video árbitro, das reações dos  comentadores, das redes sociais, do dinheiro das transferências, blá, blá blá. Com quatro jornadas disputadas o assunto afunila-se em desconfianças e rancores, ingredientes indispensáveis a uma eterna e saudável polémica. Que bom poder desfrutar de uma conversa inconsequente e inócua. Espero sinceramente que este ambiente de guerrilha permanente continue a minar o futebol português. Sem ele éramos obrigados a falar de táticas, de escolhas, do jogo jogado no relvado...de futebol.

Não Dr., não foi para isso que cá vim. Tinha um trabalho de casa? Ha sim, pois tinha. Não escrevi nada mas tenho tudo na ponta da língua, melhor dizendo, na extremidade da memória. Não Dr. não me vou perder na semântica. Sabe Dr., após as doenças veio a bonança e a revolta. Comecei a viver depois do vinte cinco de Abril e no verão quente de setenta e cinco andava pela rua distribuindo panfletos dos pequenos partidos de esquerda cujas sedes, em apartamentos contíguos a habitações familiares, estavam sempre abertas a putos como eu, que ferviam de excitação com a agitação continua desses tempos. Não, não tinha ideias políticas mas apercebia-me do ódio que, depois de uma primeira fase florida, com cravos, abraços e cenas assim, crescia nas ruas. Gostava particularmente do MES (Movimento de Esquerda Socialista), a bola vermelha (agora o encarnado era perseguido) com a estrela amarela como promessa de liberdades que eu não conseguia imaginar, aqueles jovens adultos de cabelo comprido sempre tão simpáticos para os putos. Não tenho a certeza, mas penso ser dai a minha primeira paixão.

Sim Dr. era feliz, era mesmo muito feliz. Saia da escola, chegava a casa, e largava a mochila para sair logo de seguida. Rua, rua, rua e mais rua. colavam-se e descolavam-se cartazes a pedido. Era um trabalho nocturno que envolvia um certo risco, dependendo do número de participantes dos grupos envolvidos. Para alguns era uma forma de vida, muito mais do que uma motivação político. Por essa altura não se respeitava a autoridade. A bem dizer a única autoridade que eu respeitava eram as patrulhas dos Comandos que circulavam pela Amadora. Encontrava-os muitos vezes no "Lami", um café com matrecos e jogos de flippers. Olhava-os com respeito e admiração. O cabelo comprido, que saia por debaixo da boina vermelha, a G3 encostada à cadeira,  o cigarro ao canto da boca e uma cerveja na mão faziam parta da imagem de marca desta autoridade revolucionária.

Não Dr., as coisas não estão fáceis. Se tenho pensado muito no assunto? Todos os dias eu penso no assunto mas não lhe dedico muito tempo. Estou focado e sei o que tenho que fazer, assim como sei o que farei quando chegar a altura. Durmo bem graças a Deus. Às vezes não adormeço logo mas não tem a ver com falta de sono. Sabe Dr., eu gosto muito de ler e às vezes abuso um bocadinho. Já chegou a hora? Então até para a semana Dr.

2023-09-03

E os dias de espera

 E os dias de espera? O que têm eles? É mais o que não têm. Falta-lhes ritmo, melodia, o silêncio no tempo certo. Falta-lhes a cor que define o tempo, a pincelada que revela os objectos. Falta-lhes a serenidade da tua companhia nos dias em que a sobrevivência te requisita para funções de mera sobrevivência.

O cadeirão tem um sistema eléctrico que permite elevar as pernas concedendo repouso a esses membros preguiçosos. Talvez esteja a ser duro ao adjectiva-los desta forma, mas a verdade é que eles pouco fazem do que eu mando. Quando estou sozinho é mais difícil. Os movimento tem de ser estudados e os percursos definidos com antecedência. O que primeiro procuro num destino é a acessibilidade. Todos os objectivos passam por um crivo rigoroso, uma checklist com itens inegociáveis. O cadeirão também me ajuda a levantar. Sentado no meu cadeirão eu sou Rei.

E os dias de espera? O que têm eles? Têm de tudo; o levantar, a casa de banho, a bacia e o chuveiro, e isto só para começar. Achas pouco? Sabes lá tu o trabalho que isto dá. Depois há o secar-me, o vestir-me, tudo com muitas hesitações, tudo muito bem pensado, os gestos lentos procurando coordenação, a cabeça procurando a mensagem certa que devolva o resultado pretendido e eu de lado apreciando o esforço, preparado para aplaudir, boa Paulo, és o maior, e sabendo que não sou. 

A cadeira que me faz descer ao rés do chão também é eléctrica. Sento-me nela com cuidado. Fecho-lhe os braços, aperto o sinto e, com o manipulo na mão direita, vou correndo pelas escadas abaixo. Adoro a palavra "correr", adora a forma como ela escorre da minha boca, os "R's" ressaltando na minha garganta procurando fugir por entre os dentes cerrados. A chegada é acompanhada por um sinal sonoro: Não sei porquê mas faz-me lembrar os eléctricos em Lisboa. Havia um que ia para Santos, para a Escola Profissional Fonseca Benevides, eu sentado junto à janela, atordoado pelos compostos químicos que me devoravam a consciência. A cadeira é o meu transporte favorito, leva-me de cima para baixo e de baixo para cima, permitindo circular entre os meus reinos. Adormeço perto do céu e alimento-me junto à terra. Se existe simbolismo nesta merda? Talvez, mas não lhe dou muita importância.

E os dias de espera? O que têm eles? Têm de tudo um pouco; o pequeno almoço servido pelo melhor ser humano que conheço, os comprimidos dentro da fruteira - já teve fruta lá dentro mas agora dá mais jeito ter as lamelas de comprimidos, é preciso agilizar - , a taça com iogurte, frutos vermelhos e muesli, o café e  um copo de água, o cigarro electrónico fumado à porta de casa agarrado ao andarilho. Ainda só são nove horas da manhã e já consegui tanto. Os dias de espera são todos, e para que continue a esperar tenho tanto que fazer...


2023-08-20

O sarampo? Não foi só o sarampo.

 Bom dia Dr., cá estou eu outra vez. Tudo normal; as pernas de arrasto, o corpo mais magro, a mão esquerda trémula de gestos e a cabeça projectando-se num futuro que não está longe. Fui ao fisiatra para uma avaliação. Prescreveu-me três seções semanais de fisioterapia. Sim, deveria estar contente mas o problema é que em agosto tudo pára e já não há lugar para mim, talvez em setembro. Bem, na prática ficou tudo na mesma e eu vou tentar que ELA também tire o agosto de férias. Não será fácil, mas bem conversadinha é capaz de resultar.

Devíamos ir mais para trás? Acha mesmo que vale a pena? E quão longe quer você que eu recue? Até às primeiras lembranças? Ok Dr. vou fazer um esforço...

Sempre aquele pátio interior e eu sentado no poial de entrada com um bocado de plástico amarelo moldado de forma a assemelhar-se a uma pequena camioneta de caixa aberta. A minha mão é pequena mas  a pequena viatura encontra nela o espaço suficiente para se posicionar. Olho-a de cima e com a mão disponível coloco-a no poial junto a mim. Arrasto-a com a mão simulando o movimento causado por um motor. Ali perto, na estrada, os automóveis passam numa cadência constante. É de dia e estou sozinho. Não, nunca tive oportunidade de confirmar a vericidade desta memória. Certo é que nunca consegui apagar esta imagem.

Procuro o primeiro carinho sem o encontrar. No entanto estou certo de terem acontecido momentos em que eles estiveram presentes, o primeiro e todos os outros. O rés do chão, já na Amadora, era uma casa vazia com tacos de madeira. Eu corria e deixava-me cair de joelhos deslizando pelo corredor até ao wall de entrada. Paulo Jorge, não faças isso que ficas mal. Seriam essas as palavras? E proferidas por quem? Possivelmente pela minha mãe.

Da cama e do sarampo também tenho muitas imagens. A cama que, durante o dia, recolhia para dentro de um móvel que se prolongava ao longo da parede como uma estante. De lá também saia uma escrivaninha. Na parede oposta repousava um sofá com braços de madeira. Os assentos eram castanhos, de um castanho que me ficou marcado na memória como sendo a cor de um Ford Cortina que estacionava lá na rua. Mais tarde o assento do sofá foi tapado com uma manta de lã que a minha mãe tricotou com várias cores. Ela comprava as meadas de lã e eu ajudava-a a fazer os novelos. Segurava a meada com os braços esticados e as mãos por dentro mantinha-a esticada. Conforme a minha mãe principiava a fazer o novelo eu oscilava os braços para a esquerda e para a direita permitindo ao fio um deslizar regular que fazia o novelo crescer. De vez em quando eu invertia o movimento só para ter o olhar reprovador da minha mãe nos meus olhos.

O sarampo? Não foi só o sarampo. Foi o sarampo, a papeira, a broncopneumonia, a varicela, as crises de asma, as gripes e as constipações. Por essa altura também fui operado aos adenóides e às amígdalas. Eu falo do sarampo porque, na altura, era uma doença que metia respeito às jovens mães. Dizia-se que podia provocar lesões permanentes e a minha mãe ficou muitíssimo preocupada quando eu o apanhei. Havia a convicção de que a luz vermelha ajudava na cura da doença, por esse motivo, todas as luzes do meu quarto, foram forradas com papel celofane dessa cor. O quarto ficava com um ambiente estranho e os livros de bonecos adquiriam uma coloração avermelhado que lhe conferia uma áurea de mistério. Por essa altura o sangue era encarnado, da cor das camisolas do Benfica, das quais só tinha conhecimento pelos cromos da caderneta de futebol, e não havia vermelho. A guerra? Ouvia os meus pais falar e sentia a sua preocupação quando olhavam para mim.

Já chegou ao fim Dr. ? Bom, então até para a semana.


2023-08-12

Morte assistida, suicídio, ou sofrimento em nome de um ideal de moralidade

 Não, hoje não consegui consulta e contento-me com a simulação digital numa folha de papel. Porquê o tema? Bem, desde outubro do ano passado que este é um tema recorrente, ELA assim obriga. Algo foi aprovado na assembleia da republica sobre o assunto e muitas das questões que se colocaram estão relacionadas com a ética e a moralidade. Muito se falou dos médicos e dos profissionais de saúde a quem competiria executar o acto clínico, da constituição e do direito à vida, da religião, que sem direito de veto, continua a exercer pressões para lá do que seria admissível num estado laico, e dos partidos políticos, alguns dos quais pretenderiam referendar o assunto. 

Um dos argumentos utilizados, para além dos conceitos morais e ideológicos e atenção, espantem-se caros leitores, temos o comunismo, a igreja católica e um partido, apelidado de extrema direita pela imprensa da especialidade, comungando de igual condenação, muito embora por razões aparentemente diversas, dizia eu que um dos argumentos utilizados contém em si uma racionalidade perversa, a de que o estado deve providenciar todas as condições às famílias, aos cuidadores informais, às instituições que se dedicam ao árduo trabalho de manter vivas pessoas que já não se mexem e que muitas vezes só existem para satisfazer o egoísmo de familiares pouco interessados em saber a sua opinião. 

Ser prisioneiro de um corpo não é para todos. Há quem goste, quem deteste, quem se habitue, quem não suporte, quem nunca mais se consiga identificar com alguma coisa, por outras palavras, há gostos para tudo, mas, acima de tudo, há muito sofrimento.

Ser um fardo, quer seja assumido ou não por quem nos carrega, é algo que alguns de nós não conseguimos esquecer. Para essas pessoas a morte assistida  ou o sofrimento em nome de um ideal de moralidade, não são opções válidas. Para essas pessoas a espera caridosa por direitos escritos e não cumpridos não é solução. Ái que boas as intenções dos nossos governantes, nem por aqui vou, caminho obtuso, relatar a ansiedade de quem precisa, pede e lhe pedem para esperar, mesmo quando não há tempo e a solução passa pelo investimento particular (imagino o sofrimento de quem não tem).

Ser um fardo é ser pedinte. Precisar e ter medo de incomodar...desculpe eu ser assim, não tive culpa, aconteceu...

Numa fase terminal, tendo admitido que morte assistida é imoral, que o suicídio é pecado ou que não não se está preparado para partir, resta um corpo imóvel agarrado a uma cadeira e uma mente que se mantém activa sem nada para comandar. E chegado a este ponto meus amigos, nem todos sofrerão da mesma maneira, nem todos verão recompensada a sua lealdade para com o principio sagrado da vida.

Mas uma coisa é certa, assistida ou não, ela acabará por chegar e, em última análise, enquanto houver ação a decisão será sempre pessoal, seja ela difícil ou não.

Alerto para o facto de este texto conter em si uma reflexão filosófica sobre o assunto. Talvez o que o distinga de muitas outras considerações seja a legitimidade com que ele é escrito e à qual não admito contestação.

Nota: Este texto tem como referências a aprovação de uma lei, as palavras do Papa, a hipocrisia partidária e, na prática, os que discutem sem serem, verdadeiramente, a parte interessada. Esta história de que conheço pessoas, ou que tenho familiares próximos, ou qualquer outra coisa parecida, não conta. Por muito que doa estar perto não é estar dentro.


2023-08-09

Eu não sou Cristo, não tenho nenhuma mensagem para deixar...

 Está calor. Está muito calor. É de noite e está muito calor. É de noite, está muito calor e o termómetro marca 24ºC depois de uns sufocantes 39ºC durante a tarde. Tenho dificuldade em mexer-me na cama. Os lençóis queimam e a ventoinha de plástico não consegue diminuir a grossura das veias nas minhas mãos. Ontem arrastei-me até à casa de banho onde mergulhei as mãos em água fria e molhei o peito, as costas e a  nuca. Quando voltei para a cama já estava seco. Hoje a D. deixou-me uma garrafa spray com água de uma marca conhecida. Borrifo-me várias vezes mas não consigo estabilizar a temperatura do meu corpo. 

Olho para o relógio que me deram, uma preciosidade da tecnologia que me permite monitorizar, entre outras coisas, a percentagem de oxigénio no meu sangue. Consideram-se valores bons qualquer coisa entre os 95%  e os 100%. Valores abaixo de 90% são maus. Olho para a porcaria do relógio todas as manhãs apenas para descobrir que os meus níveis de oxigénio no sangue descem durante a noite e estacionam teimosamente nos 88%. Haverá espaço para colocar uma garrafa de oxigénio junto à mesa de cabeceira? Já houve tempo em que outras garrafas velaram o meu sono.

A D. diz-me que eu devo escolher os livros a peso. Expliquei-lhe que gosto da companhia de um bom livro por mais de um mês. Geralmente escolho-os para ler na cama. São trinta e tal dias de companhia, à qual me habituo ao fim de uma semana, e da qual sinto saudades quando acaba. Pelo meio, na sala, leio amigos mais pequenos. Já pensei comprar um suporte de leitura...para me ir habituando. Quem primeiro me sugeriu a ideia foi o Dr. V.J. Penso que não resolve o problema para todos os livros porque alguns teimem em fechar-se mal se libertam da pressão dos meus dedos. Força-los seria ferir-lhes a lombada, deixar a a minha marca no seu lombo, mostrar que os domestiquei.

Acabaram as jornadas, duram os incêndios e começa o futebol. Entre os recordes de temperatura, Marcelo e Costa tiram proveito do sucesso da missão JMJ. Francisco foi igual a si próprio, uma lufada de ar fresco perdida na hipocrisia de uma Igreja que se tenta actualizar mas há temas que continuam a doer. A morte assistida é um deles. Perguntam sempre a opinião às pessoas erradas...

Assumo a minha fé cristã. Mais do que em Deus eu acredito no Cristo-Homem, Cristo-Revoltado, um Cristo-Social que nos inventou iguais para nos apresentar ao seu Pai. Também ele teve uma morte assistida quando se deixou crucificar. Podia ter evitado a cruz, mas não o fez. Decidiu-se pelo sacrifício e inventou-lhe um significado. Foi esse o seu testemunho e por esse motivo adoramos a cruz. Eu não sou Cristo, não tenho nenhuma mensagem para deixar e gostaria de morrer sem sofrimento mas com dignidade.

O relógio da cozinha está a precisar de pilhas outra vez. Já pensei em deixar que os seus ponteiro se imobilizem para sempre numa ilusão de imortalidade, apenas desfeita duas vezes por dia, mas a ideia não agradou à D. e eu tive de concordar com ela. Afinal ainda precisamos do relógio da cozinha, nem que seja para constatar, todos os dias da semana, que estamos atrasados para o trabalho, ainda por cima eu não posso correr...

2023-08-05

Atualização manual; a linha base da lucidez...

 Bom dia Doutor. Já há algum tempo que eu não venho cá e estava a precisar de falar. Podia ter telefonado? Eu sei, mas achei melhor esperar pela consulta que tinha marcado. Sabe Doutor, eu preciso de digerir o que vai acontecendo. Cada dia que passa apresenta-me um número infinito de desafios. Cada ação é uma batalha cuidadosamente preparada. Cada gesto é minuciosamente cálculado. Nunca posso baixar a guarda.

Fui ao médico para preparar as coisas e informar-me sobre o meu seguro de saúde. Ficou espantado por ainda me encontrar a trabalhar. Queria dar-me baixa. Enfim, lá lhe expliquei que preciso dessa rotina para me manter são. Para já vamos adiantar o processo de modo a obter a reforma por invalidez, são coisas que demoram tempo e precisam ser tratadas atempadamente. As análises que me mandou fazer estão uma merda. Desculpe Doutor, mas a palavra é mesmo essa. Receitou-me mais comprimidos...estou nuito doce. Qualquer dia tenho abelhas ao meu redor recolhendo nectar do meu corpo, levando o meu polén para lugares distantes. Pergunto-me a que saberá o mel fabricado a partir do meu nectar.

Fui a Santa Maria a semana passada. As informações que me dão não são novidade para mim. Pior das pernas, pior da mão esquerda, os pés a recusarem mexer-se, o diafragma a ficar preguiçoso durante o sono,  a evolução, que eu gostaria mais lenta, tem vida própria. Receitou-me vitamina B. Parece que chegaram à conclusão que faz bem. Mostrei-lhe as análises, os açucares elevados, as gorduras a subir, o figado a ceder, um sem número de anomalias a juntar à anomalia que eu sou. Disse-me para eu não me preocupar com as gorduras. O facto de ter os valores elevados até que é bom, pormenores desta doença. Só preciso de controlar os açucares.

Finalmente vou a um fisiatra. Decidiram que eu preciso de fisioterapia especializada e passaram-me uma credencial. Entretanto a APELA contactou-me. Parece que também querem fazer-me uma avaliação. Se me agrada? Penso que sim, funciona como uma espécie de droga, mas cujo o efeito é, temporalmente, muito reduzido. Quando cheguei a casa já tinha passado. Sabe Doutor, agora estou sempre à espera de qualquer coisa, boa ou má. O melhor é esperar sentado. Rio-me da ironia desta frase...por enquanto ainda consigo rir-me.

Estou a ler "O Homem Revoltado" de Albert Camus. Já leu? Sim? Era de esperar. As interrogações e as linhas de raciocinio que lá estão esplanadas são, de alguma forma, universais. O Homem, Deus, qual o significado da minha existência. São coisas boas para distrair mas não acrescentam nada ao meu quotidiano. Não me entenda mal Doutor, eu estou a adorar o livro, fez-me até ler alguns filosofos que me passaram ao lado. 

Por enquanto ainda consigo abrir um livro. A mão esquerda tem dificuldade em passar as folhas. Por cada uma que viro obtenho uma vitória. Ainda tenho tanto para ler. Escrever? Deixou de ser um objectivo. Não sei porquê mas as palavras deixaram de ter importância. Desculpe Doutor, eu não me estou a fazer entender. O que se passa é que eu já não procuro uma escrita cuidada, bem estruturada gramaticalmente, com adjectivos preciosamente escolhidos, joias de prosa sem valor, poemas que qualquer IA pode imitar.

Será que as palavras esculpidas em marmore de dor também podem ser imitadas. A base de dados de todo o sofrimento humano. Ó máquina divina, dá-me ai um soneto com a dor d'ELA no meu corpo, estilo Cesário Verde. Porquê Cesário Verde? Porque também ele morreu de doença, novo. Talvez assim as palavras gritem de dor bem fingida.

Às vezes pergunto-me, para que serve a inteligência biológica? Só a Moral nos impede de morrer, tudo o resto é acessório. Moral, palavra turva, manifestamente filosófica, encantadoramente ambigua. No dia em que ensinarmos à máquina os conceitos morais que presidem ao julgamento das acções, deixaremos de ser necessários.

Sim Doutor, eu sei que me estou a desviar do assunto que doi, mas, porra, acho que tenho o direito de me iludir, cobrir-me com uma manta e olhar pela nesga, que mantenho com a mão direita, para o mundo lá fora. 

Já acabou Doutor? Eu hoje estiquei-me um bocadinho, eu sei. Mas isto é mesmo assim, há dias que dói mais e o tempo nunca chega para dizer tudo. Até para a semana Doutor e obrigado pela paciência.

No ecrã a placa anuncia o que se espera por detrás do processador...Dr. Blogue... 

2023-07-27

Desculpa D.... amo-te tanto

E o mundo continua a girar. Esta constatação poderá não ser dramática, mas para mim tem um sabor amargo. O FMM arrancou em Porto Covo e chegou quarta-feira a Sines. Sentem-se os aromas no ar, e as conversas dividem-se entre combinações de encontros e projectos de férias. Por momentos o Mar Negro perde importância. As ameaças a navios civis, os bombardeamentos, a falta de alimentos nos países pobres, as alterações climáticas, as taxas de juro, a greve dos médicos, os professores, os desvios na Altice, tudo isto, por breves instantes, deixa de ser assunto. Por momentos o mar é azul e cheira a protetor solar, as refrigerantes e a Gin tónico. Os corpos bronzeados, manipulados em ginásios, disfarçados por roupas criadas para o efeito, tomam conta das ruas. Ái de quem não se converta. As piras de madeira, recentemente cortada, são estrategicamente colocadas nas esplanadas. 

O mundo continua a girar e eu sinto-me traído. Como é possível que ele não dê pelo meu sofrimento? Como é possível que ele não ouça os meus gritos de desespero enquanto tento equilibrar-me para chegar à casa de banho, enquanto tento calçar os meus ténis, enquanto tento cortar um bocado de carne no prato, enquanto tento uma vida o mais normal possível?

Sinto a vertigem do movimento. O mundo gira deixando atrás de si o crepúsculo de pessoas consumidas. O menino bate recordes na sua tentativa de grelhar a humanidade e eu pergunto a mim próprio se devo preocupar-me. Claro que sim. O amor que sinto pela minha filha, pela minha mulher, não me deixaria responder de outra maneira, mas a verdade é que, às vezes, estou-me completamente nas tintas. Quando acordo, depois de um sonho em que controlava o meu corpo, eu deixo-me ficar deitado esperando voltar a adormecer. Ainda hoje aconteceu, que tristeza os meus olhos abertos, as cãibras pelo corpo, a pele enxovalhada, os músculos mirrados, que tristeza eu mesmo a girar com o mundo.

Vendi o meu carro, já não o consigo conduzir. Há dois anos atrás jurava a mim próprio que o havia de levar para a cova, coisa parva para se dizer, mas que era a demonstração verbal do meu amor pelas coisas que me acompanharam na vida. Pela primeira vez consegui chegar aos 200.000km com um veículo. O meu Juke vermelho. 

Um dia, num jantar, ou seria um almoço, bem não interessa, uma dessas refeições em que juntamos uma dezena de pessoas para comemorar uma coisa qualquer, ou a pretexto de qualquer coisa, alguém, numa conversa a respeito de automóveis, comentou que o meu Juke era o carro mais feio que havia, e chamou-lhe Yuke. Senti tanto orgulho nessa fealdade que passei a referir-me ao meu carro como o meu Yuke. Gostava tanto de o conduzir, possivelmente o automóvel de que mais gostei

Não fui capaz de despedir-me do meu Yuke. Sinto-me triste e o mundo continua a girar. Os objectos à minha volta revelam-se inimigos implacáveis quando tento resistir à imobilidade, sempre dispostos a relembrarem as barreiras, o campo minado em que se transformou o mundo que me rodeia.

Preciso de marcar uma consulta com o Dr. Blogue. Desta vez não quero só falar, quero alguma espécie de resposta, uma merda qualquer, nem que seja só para me dizer isso mesmo, que sou uma merda. Ninguém tem coragem para o dizer, coitado do deficiente, não batam mais no ceguinho.

São 19H10 e, alguns anos atrás, estaria a preparar-me para uma noite de concertos. Talvez eu amanhã arranje coragem para aceitar o convite, a exposição mediática do corpo destroçado a quem ninguém liga.

Desculpa D.... amo-to tanto.