2006-09-01

Um conto em três páginas (c)

3ª e última página

Somos despertados por pequenos sinais, algo que os filmes de intriga nos revelam. Vemos, vemos e não vemos nada. De repente algo nos chama e tudo o que em nós pensa se focaliza. Leonel descobriu no meio da marginalidade e do crime duas pequenas fotografias de uma mulher desaparecida dias atrás. O antes e o após, de um lado a trabalhadora, do outro o corpo de uma mulher amortalhado num cenário policial. Da primeira imagem fixou a farda e o cabelo. Passara as últimas horas pintando sobre tela uma figura feminina com as mesmas características, mas de ângulos diferentes. Voltaram-lhe à ideia as perguntas que tinha por fazer, quem são, quem as faz, porquê reproduzi-las, essas mulheres, essas fotografias, qual o objectivo?
O desespero dos últimos tempos deixara-o demasiado magoado para preocupações de superficialidade ética. Acabou o que tinha de acabar, marcou novo encontro e aceitou nova fotografia. Descrever esta fotografia seria repetir a simplicidade das restantes, um quarto, um canto, uma luz sem origem visível e uma figura feminina, sem rosto, embrulhada sobre si mesma. O lado sensual era absorvido pela ausência de pormenores e pelo estático da figura, sem roupa que apenas mostrava a zona lombar e a curvatura das pernas torcidas. O trabalho tornou-se mais pausado, mais pensado, três semanas foi o tempo necessário para entregar a terceira tela. Sentia-se a sistematização dos processos, deixara os aditivos químicos e reduzia-se ao álcool nocturno e a haxixe, que pagava a fornecedores amigos com trabalhos de menor intensidade. Um dia, por volta da sexta fotografia, consegui questionar o professor, “Posso fazer-lhe uma pergunta?”, “Sim!?!?..”, “Quem são elas?”, “Quem!?”, “As mulheres?”, “Possivelmente modelos…Não sei…Não me interessa….Porquê?”, “Porque gostava de saber.”, “Explica-te…Não estou a perceber.”, “Desculpa…Paranóia minha, isto passa …”.
A qualidade do seu trabalho melhorava a olhos vistos e o ritmo foi diminuindo de intensidade valorizando a técnica. Já tinha executado quinze telas quando, e novamente por acaso, se fixou numa coincidência criminal noticiada no Correio da Manhã, “As autoridades presumem trata-se do mesmo suspeito. “, “O assassino em série terá morto quinze mulheres, segundo fonte oficial.”. Nessa edição apareciam fotografias das vítimas, em vida e após vida. Em todas elas as datas de desaparecimento coincidiam com as suas reproduções. Mais à frente falava-se do suspeito como alguém que teria cometido os crimes para executar obras de arte. Nunca o seu instinto funcionou tão depressa. Telefonou para uma amiga em Madrid e arranjou maneira de ela o convidar para uma semana de trabalho, ele pagava tudo. Abalou de camioneta, modo seguro para passar despercebido. Foi lá que soube da rusga ao seu quarto, da certeza das autoridades sobre a identidade do assassino, das promessas sobre a sua detenção. Pediu à sua amiga que ajudava emigrantes Marroquinos para lhe arranjar outra identidade. Durante algumas semanas falou-se no caso em Portugal, tendo-se noticiado inclusive, a apreensão dos quadros das vítimas pintados pelo assassino. O valor desses quadros e após variadas especulações subiu para valores inimagináveis. O actual proprietário que os tinha adquirido ao professor do assassino fazia promessa de se desfazer deles o mais depressa possível.
Leonel Marques, agora Abelâmio Rodrigues, prosseguiu uma vida marginal com uma prostituta de Madrid…E nunca mais ninguém soube dele. Adamantino Gomes é actualmente um nome incontornável no comércio de arte em Portugal.


P.S. Um bom fim de semana!

5 comentários:

Miguel Baganha disse...

Só pra deixar um abraço, amigo Guerreiro... ainda não li a trilogia, pois não ando com cabeça pra nada... quando o fizer, será com a atenção merecida.

Mas o meu abraço, fica aqui...

Bom-fim-semana,

Miguel

muguele disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
muguele disse...

Boas, Guerreiro!
Já não te deves lembrar de mim mas a tua "mana" explica-te quem sou.

Gostei da leitura por aqui e tenciono voltar. aparece lá pelo meu Mug Music .
Pode ser que gostes de alguma da música que por lá vai passando e que te apeteça dizer qualquer coisa.

Um abraço
Muguele

Titá disse...

Não esperava este fim...o que ainda tornou esta trilogia mais deliciosa. MAno, parabéns...tens que escrever mais thrilers. Tá genial

Quanto ao Muguele...é o meu vizinho, amigo de sempre do Henrique lá dos Olivais, que eu chamo de Tony. Conheceste-o cá em casa.

pb disse...

concordo com a titá, não esperava um fim assim, mas está óptimo. PAra quando o próximo conto ? Um abraço